Super Bock Super Rock. A casa foi o mundo inteiro de Slow J

Num festival com apelido de rock, a noite do hip-hop foi dominada por uma voz sem fronteiras. Slow J, o maior talento da sua geração. No futuro, o altar será dele.

Admirável mundo novo em que o maior talento de uma geração é compreendido. Admirável mundo novo aquele em que a banda mais sobrevalorizada dos últimos anos vinte anos se vê perante um pavilhão vazio. 

Complicado mundo novo aquele em que os puristas do rock observam um rapper sugar-lhes a energia. Complicado mundo novo aquele em que os conservadores têm de lidar com um mundo em mudança acelerada. 

O dia do hip-hop num festival com apelido de rock não foi o melhor do ano, como o de Kendrick Lamar em 2016, nem gerou o mesmo grau de unanimismo mas face ao historial ainda incompleto de noites com esta tipologia no roteiro nacional, continua a gerar um misto de surpresa, admiração e algum desconforto em quem não aceita que um cabeça de cartaz possa ser um homem e o seu murmurar. Já lá vamos porque o nome com corpo de letra maior foi quem gerou o maior ajuntamento mas o vencedor foi outro.

João Batista Coelho, de berço, Slow J, de identidade, é o maior talento da sua geração e deu um concerto à altura de "The Art of Slowing Down", o melhor álbum português dos últimos anos. Apesar de desacelarado por limitações físicas, entrou a voar como o Jardel sobre os centrais com a leitura desassombrada para "Não Me Mintas" de Slow J.

Sustentado por uma soberba e cada vez mais mecanizada banda, formada por Fred na bateria e Francis Dale nos teclados e guitarras, fez do Super Bock a "casa que é o mundo inteiro", tal como verbaliza na "Casa" que é uma das canções decisivas para o compreender e para descodificar a chave desta música – batida de semba com rap cantado por cima e refrão com coros em cascatas importados da eletrónica moderna. Slow J não é um MC purista, mas tem o dom da palavra. Não é um cantor soul na genealogia, mas tem a alma toda.

E nem a lesão lombar o impediu de encher o palco, sem precisar de recorrer a clichés. Talvez a maior (única?) surpresa tenha sido a enchente para ver e o conhecimento profundo da sua obra de trás para a frente pelo público.

Quando "The Art of Slowing Down" saiu em Março, percebeu-se ser um clássico instantâneo e um dos mais importantes álbuns portugueses em décadas. Pelo horizonte infinito de quem derruba muros, quebra fronteiras e constrói pontes quando o hip-hop ainda vive demasiado fechado sobre si mesmo, apesar de diversos sinais de mudança, e a música de cá, apesar da diversidade, começa a perder outra vez a portugalidade para se fixar em réplicas de Brooklyn. 

Slow J foi a excepção e o concerto no SBSR, sublinhou e deu corpo a um talento ímpar. Na noite que não foi como a de Lamar, ele foi o Kendrick de 2017. Na entrega em palco e receção do público. 

"Se ficarem confusos se isto é hip-hop, se é rock, não fiquem. Vai correr tudo bem". Quando rematou o concerto com os singles Pagar as Contas" e "Vida Boa" deixou também o rasto de uma vida longa.

A tarde começara com uma estreia esquisita de Pusha T, um dos rappers mais respeitados dos EUA,  diretor criativo da companhia de Kanye West a reunir um número inusitado de pessoas debaixo de um (e de uma pala), para ouvir o estrondo de bombas como "Numbers On The Boards" e "Mercy". Muitos questionaram a hora do concerto de alguém com tanta importância mas havia uma explicação. 

À noite, Pusha T teria de estar na Bélgica para outro festival. Em piloto automático, preencheu um dos espaços vazios da incompleta caderneta do hip-hop em Portugal mas merece um regresso noutro contexto, com outro adiantado de hora. 

Keso haveria de nos contar histórias escritas num caderno, sobre Shoreditch e o Porto, em palco como quem se senta à escrivaninha. Aqui está uma voz a precisar de mais gente para materializar a fuga à infantilização crescente do hip-hop. Em Portugal e no mundo. 

Há um ano, Orelha Negra e De La Soul estenderam o tapete para Kendrick Lamar incendiar um pavilhão inteiro. Este ano, o quadro foi radicalmente diferente.

Mal enquadrados no cartaz, The Gift e London Grammar foram estrangeiros num dia e num palco que não era para eles. E apesar de nenhuma das bandas elevar a pop ao altar, acabaram desfavorecidas pelo contexto.

A maré estava, pois, toda a favor de Future mas enquanto Kendrick é transversal e agregador, o rei do (t)rap de Atlanta fala para uma geração. E seguramente nem toda a gente o entende.

O murmurar típico desta expressão sulista está para o rap como os Allman Brothers estavam para o rock há 40 anos. É um estilo, pode é gostar-se ou não.

Future não precisa de uma banda para ter massa de som. Sozinho, com três bailarinos, enche o palco.

E faz do concerto uma sucessão de bangers, de "Draco" a "Fuck Up Some Commas", de "New Level" a "Comin' Out Strong", encerrados pelo fabuloso "Mask Off", um dos hinos de 2017, no MEO Arena ou num clube noturno. De facto, esta música vem da rua mas o que é impressionante é que, sem rádio, nem a imprensa deslumbrada por Kendrick ou Kanye West, tem uns bons milhares a conhecê-la de trás para frente. Pelo menos no linguajar franco.