O tempo é um pretérito perfeito, terão pensado os nostálgicos que lotaram o MEO Arena para assistir a 90 minutos cronometrados ao segundo dos Red Hot Chili Peppers. O tempo é um presente indicativo de um mundo sem bandas nem instrumentos orgânicos em que o som chove de uma nuvem e um rapper é suficiente para o hip hop cumprir a função de rock’n’roll do séc. xxi. O tempo é memória em construção, responderão os fãs dos Deftones ainda a recuperar da revisitação a memórias de uma adolescência angustiada, ou os que esperaram por Fatboy Slim para a festa nos vermelhos mais adequada ao Sudoeste do que ao Super Bock Super Rock.
Três vias possíveis para um só caminho da felicidade porque, se há marca do contexto atual, é a da mistura. O apelido rockeiro do SBSR vem a ser desmontado há várias edições e atingiu o zénite em 2016, quando Kendrick Lamar deu voz a uma nova imensa minoria, ruidosa nas redes sociais, a quem faltavam oportunidades para ver os ídolos da era digital: os rappers, os novos ícones rock.
O desenho deste SBSR foi diferente. A prioridade foi atribuída aos Red Hot Chili Peppers e as cerca de 20 mil pessoas que esgotaram o MEO Arena na primeira noite garantiram a resposta que um tiro seguro pretende assegurar. Só sobraram algumas fatias do bolo para os Capitão Fausto ou Legendary Tigerman, protagonistas secundários de um serão com maioria absoluta anunciada e consumada num catálogo de êxitos diretos ao nervo da geração de 90, de “Californication” a “Give It Away”.
A segunda noite era de Future e de um futuro há muito previsto nas bolas de cristal, agora reconhecido pela indústria da música em Portugal. Promotoras, editoras e meios de comunicação social foram obrigados a confrontar-se com um universo paralelo aos circuitos institucionais. Future, o embaixador do trap, expressão sulista verbalizada através de palavras-chave e frases curtas murmuradas, é essencial para se compreender esse mundo em mudança.
Sem antena radiofónica nem a massa crítica gerada por Kendrick Lamar ou Kanye West, arrastou uma geração na casa dos vintes que sabe todas as letras do princípio ao fim. Não gerou o consenso da noite do ano passado porque, enquanto Kendrick Lamar tem o impacto transversal, Future fala para um segmento de uma forma particular e com um espetáculo de raiz americana com instrumentais e vozes gravadas. Sozinho, com três bailarinos e projeções vídeo, enche o palco. O magnetismo é o das grandes estrelas, a adrenalina é a do rock’n’roll, mas a música (ainda) é diferente. E foi-a ao ponto de, no final do concerto e no último dia, se sucederem os comentários dececionados com o formato e com a “pobreza” da apresentação. Acontece ser feitio, e não defeito. A massa de som está lá e bate no corpo embora, reconheça-se, a qualidade acústica do MEO Arena tenha regredido, após a intervenção do ano passado ter melhorado a insonorização do pavilhão.
Future dividiu para reinar, Slow J, o heterónimo de João Batista Coelho, capitalizou o entusiasmo prometido pelo álbum “The Art of Slowing Down”, de início do ano, mas talvez tenha surpreendido o conhecimento popular de fio a pavio de canções que, ao contrário das de outros rappers, não geram números milionários nas redes sociais, apesar de ser essa a relação mais estreita com a sua ainda curta mas cada vez mais importante obra.
No hip hop, Slow J corre por fora e é o primeiro reconhecê-lo. “Se ficarem confusos se isto é hip hop, se é rock, não fiquem. Vai correr tudo bem.” E correu mesmo. No final da tarde de sexta-feira conquistou um festival inteiro e nem uma lesão lombar desacelerou a prestação daquele que se afigura como a voz mais esclarecida e transversal de uma geração que cresceu a ouvir hip hop como quem ouve rock. Slow J fala para aqueles que não têm barreiras mentais étnicas ou culturais. Sustentado por uma banda soberba, com Fred na bateria e Francis Dale nas teclas e guitarra, chamou os convidados do álbum Nerve, Papillon e Gson para a “casa que é o mundo inteiro”.
Era o segundo concerto no Super Bock Super Rock, depois da estreia no Palco Antena 3 no dia histórico de Kendrick Lamar, e, em 2018, Slow J voltará a dar o salto, já que o promotor Luís Montez o confirmou para o próximo ano, mas agora no MEO Arena. O “Amanhã Tou Melhor” otimista dos Capitão Fausto estará nas mãos daquele que “queria ser como os grandes cantores” e ameaça fazer à música portuguesa “aquilo que o Cristiano Ronaldo fez ao Figo”. E isso tanto pode passar por cantar o Sado sobre uma batida de semba como por dar a volta a “Não Me Mintas” de Rui Veloso. Atrás de uma “Vida Boa” vem uma longa vida.