Que atire a primeira pedra quem nunca atirou a primeira pedra. E que atire a segunda pedra quem nunca se cruzou com “Despacito” nas redes sociais, na rua, na rádio, no carro ou na televisão. No manual “Escrítica Pop”, escrito entre 1980 e 1982, Miguel Esteves Cardoso tinha uma expressão para estes vírus que se instalam na cabeça e são difíceis de desinstalar: otovermes.
Na semana passada, era a notícia a queda de “Gangnam Style” do altar do vídeo mais visto de sempre no YouTube por troca com “See You Again”, o tributo a Paul Walker de Wiz Khalifa e Charlie Puth. Ontem, o hit deste verão tornou-se na música mais ouvida de sempre nas várias plataformas de streaming da Internet: já foi escutada 4,6 mil milhões de vezes.
Se se está a sentir traído pelo gosto musical ou por ter contribuído para a conta bancária do porto-riquenho Luis Fonsi, a ciência tem o álibi perfeito para o link aberto às escondidas quando os colegas foram fumar. Estudos na área da neurociência e da psicologia encontraram elementos comuns a este tipo de canções “pastilha elástica”.
De acordo com Jessica Grahn, cientista da Universidade do Oeste de Ontario, no Canadá, “a música ativa as áreas do cérebro relacionadas com sons e movimentos, mas também as áreas associadas às emoções”. As mais populares “são aquelas que geram uma maior comunicação entre as áreas do cérebro relacionadas com o som e as áreas relacionadas com as emoções”, refere à BBC.
O primeiro fator decisivo para conquistar a glória é o ritmo, diz. Quando a batida é fácil de acompanhar, como a de “Despacito” é, aumenta a capacidade da zona do cérebro relacionada com o movimento. Mesmo que o corpo esteja imóvel, como no sofá ou à secretária. De acordo com esta estudiosa, ritmos familiares e previsíveis funcionam como recompensa para o cérebro, porque é confortável que a música se desenvolva como seria imaginado.
Convém, no entanto, não esquecer o tempero. Um toque de imponderável pode ser o picante necessário para viciar o cérebro. “Trata-se de usar a batida, mas fazê-la mais interessante com alguma novidade. Tornar a canção interessante, sem mudar muito o que esperamos ouvir”, explica.
Nahúm García, um produtor espanhol, acredita ser essa é uma das razões para o sucesso de “Despacito”. “Um dos segredos está relacionado com o facto do ritmo da música ser quebrado antes do refrão”, defende. “À medida que os músicos cantam “Des-Pa-Cito”, há uma pausa na canção, que origina uma quebra no ritmo”, relaciona. E deixa um elogio inesperado. “As pessoas riem-se de “Despacito”, mas a maneira como o ritmo quebra antes do refrão é uma genialidade. O cérebro dá conta que houve uma pausa incomum e isso chama a atenção”, escreveu nas redes sociais.
Psicólogos e neurocientistas catalogam de “música pastilha elástica” as canções simplistas e movidas pelo ritmo, ou por uma melodia fácil, normalmente repetitivas na forma como a estrutura está construída. Outra característica é o facto de conterem, lá está, elementos invulgares, como um compasso irregular ou um padrão de melodia pouco usual. “Despacito é animada, simples, repetitiva e tem um ritmo pegajoso”, afirmou James Kellaris, compositor e professor na Universidade de Cincinnati à BBC.
A atração exercida pelo vídeo – responsável pelo crescimento da procura turística por Porto Rico e pelos locais incluídos nas filmagens – e o efeito social de contaminação coletiva são outras justificações avançadas para o contágio de “Despacito”. E há ainda uma remistura com Justin Bieber para ajudar à festa.
Para Fonsi, tudo é mais simples. “Não se mede a qualidade de uma canção pelo número de palavras ou metáforas complexas que contenha. E esta é assim de propósito. Uma canção simples, coloquial, sensual, divertida, fácil de acompanhar, concebida para que todo a gente ficasse com ela na cabeça. Há outros géneros e medidas para a poética, mas o segredo de Despacito é a alegria, que faz com que a pessoa tenha vontade de dançar, de viver, sem saber o que diz”, declarou ao El País.
Esta semana, racionalidade e subjetividade unem-se. Luis Fonsi já cantou em Portugal. Deu dois concertos: na terça-feira atuou no Campo Pequeno, em Lisboa, e ontem cantou no Multiusos de Gondomar. Em Lisboa encheu meia sala o que quer dizer que, por vezes, a obra é maior do que o criador. Há cinco anos, a febre era “Somebody That I Used To Know”, uma simpática e despretensiosa cantilena pop até a omnipresença a ter tornado insuportável. E Gotye, a voz de Peter Gabriel, que lhe dava forma era obrigado a cancelar o mesmo Campo Pequeno. Os “motivos de agenda, relacionados com questões logísticas de transporte” mais não eram do que menos de mil bilhetes vendidos para uma sala com capacidade para seis vezes mais.
Antes da estreia, Luis Fonsi gravou uma versão em português com sotaque do Brasil e o convidado Israel Neves. “Devagar/só quero sentir o teu corpo devagar/falar ao teu ouvido até te arrepiar/quando ficares sozinha vai lembrar de mim/devagar/quero beijar os teus lábios muito devagar/ouvir os teus gemidos, fazer-te voar/não não tenho pressa, gosto mesmo assim” é o resultado da tradução. “Dei o meu melhor. Espero que as pessoas gostem tanto como eu gostei de gravar”, contou à Folha de S. Paulo.