Caminha-se muito neste filme. Aliás, a viagem da criança e do adulto falhado parece continuamente assente nas pernas dos dois protagonistas, por mais meios de transporte usados no trajeto. Talvez por não ser este um filme moderno, da era da técnica e da tecnologia, antes fazendo recordar Chaplin na amizade simples entre dois seres distintos, um irascível jogador inveterado, em tempos yakuza (pela tatuagem das costas), parco nas palavras e desajeitado nos gestos, e um pequeno de nove anos à procura de aventura para ocupar o verão.
Numa Tóquio estival de onde parece ter desaparecido para a praia grande parte da população, ao jovem Masao faltam-lhe cumplicidades para a brincadeira e, cruzando-se por acaso com a fotografia do casamento dos pais, resolve que a melhor forma de matar o ócio é lançar-se à estrada para encontrar a mãe que já não vê desde pequeno.
O pai morreu num acidente, a mãe trabalha noutra parte do país e ele é criado por uma avó que o tem de deixar sozinho grande parte do dia para trabalhar. Entregue a si mesmo no verão de Tóquio, Kikujiro corre com a sua pequena mochila a caminho de qualquer lado.
Um percalço depois, acaba emparelhado com Kikujiro nessa jornada de dois seres que terminam por descobrir afinidades na misantropia de um e na fragilidade do outro. O realizador e ator estende ao grande ecrã o sucesso da sua personagem de televisão, Beat Takeshi, sendo esse o nome que consta na ficha técnica como ator.
Comédia dramática cheia de silêncios e pequenos gags – o do pedófilo no parque é especialmente engraçado pelo amoralismo da cena e a resolução prática de Kikujiro, que castiga o velho depravado roubando-lhe a carteira, não sem antes tirar Masao do local –, “O Verão de Kikujiro” está impregnado de um tom iniciático que serve aos dois protagonistas: à criança que aprende as paisagens do mundo, ao falhado que descobre que pode proteger. Isto sem ceder a sentimentalismos desajeitados de comédia bem intencionada – há sempre um carolo certeiro para dar nos momentos em que o filme parece ir no caminho de se levar demasiado a sério.
Takeshi consegue transformar a fraqueza do seu rosto semiparalisado por um desastre de motorizada numa mais valia para a personagem, emprestando ao gangster de segunda uma permanente seriedade prestes a desmanchar-se. É como se a todo o momento estivéssemos à espera do emergir de uma gargalhada na procura quase infantil de arranjar uma discussão com alguém, de medir forças, de cuspir mais longe, de mijar para além – até porque sabemos, pelas cenas com a mulher, o papel subalterno que interpreta no relacionamento de casal.
Masao tem uma mente vívida, onde os sonhos se transformam em minipeças de teatro nô, incorporando o velho pedófilo ou a tatuagem de Kikujiro, em delírios de cor e forma. Na exibição da tatuagem, Takeshi demonstra a sua capacidade cinematográfica, incorporando um elemento de profundidade dramática com um simples plano – que serve no plano onírico e biográfico, ajudando a entender que há mais em Kikujiro que o simples retrato do falhado.
O realizador e argumentista é especialmente dotado para deixar coisas por dizer, para fornecer aos espetadores pistas sem deixar o cordel que conduz à saída. A sua abordagem cinematográfica é, nitidamente, a de quem prefere dar a cana ao invés do peixe. Quem quiser pescar que pesque, quanto aos outros arriscam-se a levar uma belinha.