Professores. Quando o cancro bate à porta

Há erros nas juntas médicas de professores que têm doenças prolongadas como cancro. São vários os casos como os de Paula e Rui, que além de lutar pela vida, travam uma dura batalha para ver os seus direitos reconhecidos.

Paula, 39 anos, é professora há 16 anos e nos últimos quatro anos tem vindo a batalhar pela vida. Literalmente. Aos 35 anos, o mundo como o conhecia mudou quando lhe foi diagnosticado um linfoma «raro e inclassificável». A doença levou-a a fazer dois transplantes, a passar longos períodos de internamento no IPO de Lisboa e a ter de viver o dia a dia praticamente condicionada em tudo. «Não posso dormir duas noites seguidas com os mesmos lençois, não posso sair à rua e só posso comer alimentos frescos. Tudo o que é congelado não posso comer», conta ao SOLa professora de Matemática e Ciências da Natureza do 5.º e 6.º anos da região de Setúbal.  

Apesar do percurso duro, não foi a doença que a deitou mais abaixo. O choro chegou quando teve de resolver a sua situação profissional e se sentiu desamparada e humilhada. 
Além de travar a luta pela vida, Paula teve de batalhar contra o que acredita serem irregularidades no funcionamento das juntas médicas e contra alterações feitas recentemente à lei, que vieram apertar as regras de atribuição de benefícios aos funcionários públicos que se encontrem com doenças prolongadas, como é o seu caso. «O grande cansaço que tive foi isso. Estava em tratamentos ligada ao soro quando olho para o email e vejo a recusa da Caixa Geral de Aposentações a dizer que não tinha proteção no meu pedido de reforma como doente oncológica. Não tinha explicação. Foi a machadada final», recorda. 
 
A luta pela reforma

A nega da CGA chegou depois de, aos 39 anos, se ter visto «forçada» a pedir a reforma antecipada. Isto porque tinha esgotado o prazo máximo previsto na lei que permite aos funcionários públicos ficarem em situação de baixa por doença prolongada: 36 meses. Um prazo «muito curto» para que uma pessoa com cancro se consiga tratar e regressar ao trabalho, diz a professora.

Apesar de se sentir sem forças, não se conformou e decidiu avançar para uma junta médica de recurso. «Ao menos, que não me retirem todos aqueles anos que não tive porque não pude, não foi porque não quis. Não tem explicação o desamparo que se sente», recorda ao SOL. 
Só agora, um ano depois de um longo processo burocrático e de uma junta médica de recurso, a professora – que diz nunca ter faltado «um dia na vida» ao trabalho – conseguiu que o mesmo Estado que lhe dizia apenas que estava «numa situação de incapacidade para o trabalho» lhe reconhecesse a condição de doente oncológica. 
Desta forma, Paula vai conseguir receber uma pensão equivalente a 80% do seu salário, que rondava os 1.500 euros brutos. Se não tivesse lutado, teria ficado com uma reforma equivalente a apenas 20% do vencimento. 

Despesas de 100 euros semanal

A diferença é significativa e ajuda a pagar uma fatura semanal de 100 euros em medicamentos, 400 euros ao final do mês, fora as depesas extra que surgiram com a doença. 
Para conseguir tornar menos má a sua situação, teve de pagar do seu bolso a um advogado e a um médico, sem qualquer apoio do Estado, para que fosse acompanhada na junta médica de recurso. 

Só assim conseguiu responder às exigências da Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares (a entidade que gere as juntas médicas na área da Educação) e pela CGA, que a obrigavam a apresentar um documento de um médico a provar que «nunca iria recuperar na vida». Diagnóstico que hoje, com a evolução da ciência e da medicina, os médicos recusam fazer. «A resposta que tive do meu médico foi que ninguém pode dizer a ninguém que nunca vai recuperar, mesmo em oncologia», relata a docente, que o que queria mesmo era poder ter continuado a dar aulas. «Só quis ser professora na vida. É o que mais gosto de fazer», frisa Paula, que recorda que no dia em que lhe foi diagnosticado um tumor de 16 cêntimetros «estava com a pasta da escola na mão para ir dar aulas». 

Depois desse dia do diagnóstico, o momento em que teve de pedir a reforma foi o mais complicado da sua vida. «Não é fácil entregar a reforma aos 39 anos. Queria manter-me ativa e poder fazer qualquer coisa que a minha saúde me permitisse». 
Para o ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, que é precisamente investigador há vários anos na área do cancro, Paula tem apenas uma mensagem: «espero que nunca lhe aconteça».   

Rui tem cancro e não conseguiu baixa 

A história de Paula é apenas um dos vários casos em que tem havido queixas de irregularidades e erros das juntas médicas da Direção Geral dos Estabelecimentos Escolares (DGEstE). Erros que estão a afetar vários professores com quem o SOL conversou, havendo ainda outros casos que têm vindo a público.

Rui é outro professor que tem travado a luta dupla do cancro e das juntas médicas. Aos 43 anos, foi diagnosticado ao docente de Educação Física na zona da Grande Lisboa um tumor de seis cêntimetros no pulmão.        
E dois anos depois, ainda não foi chamado para qualquer junta médica de forma a que conseguisse ficar de baixa por doença prolongada. 

Depois de ter ficado ausente da escola durante 740 dias, o prazo máximo para uma baixa regular – e de ter entregue na escola toda a documentação exigida pela DGEstE – Rui foi chamado para se apresentar ao serviço. Não teve escolha senão voltar a dar aulas a cinco turmas de alunos entre os dez e os 12 anos, poucos meses depois de ter sido operado ao cancro.        

Desde abril que Rui dá aulas de Educação Física na rua com capacidade respiratória de 30% e sendo que uma das suas indicações clínicas é precisamente evitar a exposição a variações climatéricas, explica o professor.
A tomar medicação para as dores e com declarações clínicas a atestar que «não está apto para trabalhar», Rui tentou perceber junto da escola e da DGesTE o que aconteceu para que nunca fosse chamado a uma junta médica para baixa de doença prolongada. «Ninguém sabe o que aconteceu», dizem-lhe. 

Poucos meses antes de regressar à escola, em janeiro, foi operado e começou a fazer quimioterapia, tendo chegado a pesar 50 kgs. E nem com este historial conseguiu que a escola lhe aliviasse o serviço e dar aulas a menos turmas ou a alunos mais velhos, por exemplo. O ânimo é pouco e cada vez menor. Professor há 16 anos, e tendo gostado sempre da profissão, sente-se «desiludido com as pessoas» e passou os últimos meses a contar os dias para o final do ano lectivo.  

Em setembro, estará a dar aulas noutra escola, mais longe de casa, para onde concorreu com a esperança de que, se não conseguir baixa, ao menos que o serviço seja adaptado à sua saúde.  

Questionado várias vezes pelo SOL, o Ministério da Educação recusou divulgar o número de baixas decididas juntas médicas da DGEstE nos últimos anos e o número de aposentações concedidas a reconhecer doença oncológica.
Sobre os erros das juntas médicas, o gabinete de Tiago Brandão Rodrigues diz apenas que esta é uma «questão extemporânea» já que, argumenta, emitiu «no dia 4 de maio, uma circular às escolas esclarecendo que os docentes que se encontrem de baixa prolongada e que, por motivo imputável à administração, não tenham sido avaliados por junta médica da DGEstE, não são chamados de regresso às escolas». 

Esta circular foi, aliás, enviadas às escolas depois de uma recomendação do Provedor de Justiça. No entanto, a circular do Ministério da Educação não evita os erros nos processos como o de Rui, que foi chamado para regressar à escola em abril. A circular em maio nada mudou. Por um mês, a escola não o mandou para casa e não chegou a ser chamado para qualquer junta médica.
 
A pedido dos professores, Paula e Rui são nomes fictícios.