O som. O carro velho, que parece desconjuntar-se a cada metro; os disparos do motor; as vibrações da carroçaria; a lentidão, a buzina de bicicleta; tudo isso está montado num grande bolo sonoro que marca logo o humor desde o princípio do filme. O som serve de superfície estridente onde Jacques Tati coloca o seu corpo como arma do gag.
Com subtileza, longe do histrionismo de outros comediantes físicos, o humor é feito do esticar do pescoço, do corpo ligeiramente inclinado para a frente, da forma de segurar o cachimbo, de pôr ou tirar o chapéu. Na forma de olhar para longe. Tati não é Jerry Lewis, é mais mimo e menos slapstick.
Nestas férias, à beira do Atlântico, o que importa são os bonecos, aqueles que enchiam as praias francesas de meados do século XX no ritual das férias. As mulheres de família com as crianças, os velhos reformados, as jovens solteiras com as suas raquetes de ténis. Não é a alta burguesia vai à praia, mas a pequena, a que aspira a ser grande, mas cujos modos traem o nascimento mais humilde.
Os modos e a cacofonia sonora com que o filme se alimenta. A montagem sonora é parte essencial da construção da narrativa – uma montagem que acentua no exagero, o humor do Sr. Hulot, essa personagem do mudo transplantado para o sonoro.
A narrativa vive desse efeito, do contraste entre a ausência de diálogos – os que existem fazem parte da banda sonora ou limitam-se ao circunstancial – e o omnipresente barulho do mundo. Por entre isso mexe-se o corpo de Jacques Tati, habituado ao desporto, ao palco (principalmente ao burlesco), ao cinema, moldado pela piada subtil contada pelo comportamento incongruente que dura segundos. Chaplin, Buster Keaton, Tati – desse triunvirato do humor cinéfilo mudo, é Tati aquele que consegue transitar melhor para o humor sonoro, sem ter realmente de o fazer. Aliás, as suas longas-metragens, em que se dirige a si próprio, são todas do tempo sonoro e constroem-se todas da mesma forma: um herói desajeitado sem palavras rodeado de sons por todos os lados.
Explicação simples para um cinema que é bem mais do que isso. O cinema de Tati, para lá do humor, é um retrato da França do pós-guerra, da paisagem rural conservadora (de “Há Festa na Aldeia”), ao modernismo frio da cidade (“Playtime”). É um cinema que vai explodindo de ruídos à medida que a técnica do pós-guerra vai introduzindo mais e mais máquinas de fazer barulho.
No meio, sempre a mesma personagem. Solitária, de maneiras gentis, com os olhos postos no horizonte, como se tentasse perscrutar para lá da confusão do mundo, desajeitado na sua relação com o ambiente que o rodeia. É como no truque em que alguém puxa uma toalha da mesa sem fazer cair os copos, os pratos, os talheres. Hulot mantém-se de pé enquanto o mundo moderno lhe vai tirando sucessivos tapetes de debaixo dos pés. Incluindo ele próprio, na sua relação desajeitada com o que o rodeia.
Tati dizia, numa entrevista a François Truffaut e André Bazin, que tentou desde o princípio trazer mais de verdade à sua personagem. “Aquilo que tentei foi provar e mostrar que, no fundo, toda a gente é divertida. Não é preciso ser cómico para fazer um gag. Não é preciso ser uma grande personagem cómica para que nos aconteça uma situação cómica”.
Uma visão humilde dessa construção simples expressa em “As Férias do Sr. Hulot”, a de que Hulots há muitos e Tati não inventou nada, apanhou apenas o humor que existe na banalidade da vida. E tão bem que o apanhou.