A delicada reconstrução de uma ópera divertida

Bergman recriou em estúdio um pequeno teatro de Estocolmo para esta delicada perfeição, entre o regresso à infância e a eterna magia da lanterna

Toda a sequência da abertura de “A Flauta Mágica” deveria ser incluída num compêndio de montagem de cinema. Numa sucessão rápida de rostos atentos, Ingmar Bergman filma a música, a emoção da música, não recorrendo a pouco mais que a essa sucessão de caras, novas, velhas, louras, morenas, grisalhas, tez escura, tez clara, todas com uma característica comum, a atenção com que algo fora do enquadramento as absorve. Absortas na música, dirá quem as olha.

Bergman trabalhou na produção deste filme como um relojoeiro. Queria recuperar para o espetador do século xx a experiência de assistir a uma ópera do século xviii, transportar a experiência para a Viena do final de Setecentos, quando se estreou no Teatro de Viena, em 1791. E, ao mesmo tempo, queria que emergisse da sua própria experiência de criança, do momento em que a viu pela primeira vez e se deslumbrou ao ponto de a querer montar com o seu pequeno teatro de marionetas – só o facto de não ter a banda sonora o demoveu.

Daí a escolha do Teatro do Palácio Drottningholm, de Estocolmo, um dos poucos exemplos de teatro barroco com a maquinaria de palco original ainda em funcionamento. E mesmo quando a sala se mostrou demasiado frágil para albergar todo o equipamento de filmagem, o realizador sueco não desistiu e mandou construir em estúdio uma réplica exata da sala.

O realizador sueco lembrava-se de como um dia entrou nos bastidores do Drottningholm, ainda criança, e ficara mesmerizado com aquele velho teatro restaurado. “Lembro-me nitidamente da experiência enfeitiçante: o efeito do chiaroscuro [que Sven Nykvist, o habitual diretor de fotografia, capta de forma brilhante], o silêncio, o palco. Na minha imaginação, sempre vi ‘A Flauta Mágica’ dentro daquele teatro”, escreveu na sua segunda autobiografia, “Imagens”.

Se aquilo que sentimos ao ver o filme se assemelha ao sentido pelo espetador da Viena de 1791, jamais se saberá – é muito provável que não. Do que estamos certos é que o fascínio exercido por esta ópera filmada está mais próximo da experiência sentida pelo próprio Bergman quando a viu pela primeira vez na Royal Opera House de Estocolmo, aos 12 anos. Somada à ligação sentimental ao Drottningholm, ao teatro em geral, a esta ópera em particular, o que temos aqui é um momento fascinante de teatro filmado, transformado no mais puro do cinema, dos seus primeiros passos com a lanterna mágica.

Primeiro telefilme com banda sonora stereo, “A Flauta Mágica”, de Bergman, consegue o feito de transmitir o sentimento universal da música de Wolfgang Amadeus Mozart e do libreto de Emanuel Schikaneder, ainda que a tenha feito em sueco (usando para isso a adaptação do poeta Alf Henrikson para uma produção da Ópera Real Sueca de 1968, embora introduzindo algumas alterações), o que, logicamente, traz outra sonoridade às palavras cantadas.

O génio de Bergman está aqui plasmado, sintetizado neste projeto tão particular, tão próximo do seu coração, que chega ao coração de todos. Para isso muito contribui um excelente elenco, de grandes cantores com capacidade de interpretação (Mozart compôs a pensar na trupe de Schikaneder, que incluía virtuosos e atores que ocasionalmente cantavam), com especial destaque para o Papageno de Hakan Hagegard – para o adolescente que era quando vi o filme pela primeira vez, todos os Papagenos tiveram de passar a medir-se pela bitola de Hagegard. E em todas as produções de “A Flauta Mágica” faltou sempre qualquer coisa.