A Polónia pode ser a linha vermelha e, desta vez, a União Europeia não se mostra disposta a permitir que mais um Estado-membro se transforme num país autoritário, pobremente mascarado de democracia com valores europeístas.
Bruxelas já o permitiu uma vez. Aconteceu há sete anos, quando o autoritário, nacionalista e populista primeiro-ministro Viktor Orbán ascendeu ao poder na Hungria e lá abriu guerra aos meios de comunicação, saneou críticos nos quadros públicos, amestrou o Tribunal Constitucional e aprovou uma nova e mais restritiva lei de greve.
Os responsáveis europeus disseram então que nada havia a fazer. Argumentam ainda hoje que Orbán e o seu Fidesz atuaram com uma supermaioria que lhes permitiu alterar a Constituição. O seu autoritarismo, por outras palavras, seguiu uma via legal, mesmo indo contra aquilo que são os princípios fundadores da comunidade europeia – o facto de o Fidesz pertencer ao poderoso Partido Popular Europeu também ajudou.
Hoje, a situação é diferente. A Polónia aprendeu com o rumo húngaro e segue-lhe o mesmo caminho autoritário. Por estes dias a União Europeia pergunta-se quanto vale a democracia polaca, que, há não muito tempo, parecia candidata a ser uma das futuras líderes europeias.
Bruxelas entra em cena
Bruxelas demonstrou esta semana até onde pode estar disposta a ir para evitar o rumo iliberal de Varsóvia.
A Comissão Europeia alertou na quarta-feira que pretende acionar uma primeira fase do Artigo 7 contra a Polónia caso o país avance com as pretendidas reformas ao sistema judicial, em parte vetadas – não sem alguma surpresa – pelo presidente Andrzej Duda.
Levado às últimas consequências, o Artigo 7 pode resultar na suspensão do direito de voto de um Estado-membro, algo que nunca aconteceu na história da comunidade e que apenas foi ameaçado uma outra vez, em 2000, quando o Partido da Liberdade de Jörg Haider, de extrema-direita, chegou ao poder na Áustria.
A sanção acabou por não ver a luz do dia. Em vez de suspenderem o voto austríaco, os países da comunidade decidiram aprovar um rol de sanções, sobretudo simbólicas, também através do Artigo 7. Até elas falharam o alvo, uma vez que Haider não deixou de ser uma figura popular no seu país.
Apesar dos avisos vindos de Bruxelas, que diz estar disposta a acionar a “opção nuclear” mesmo durante o período de férias, nenhum destes cenários parece credível para punir a Polónia. Tanto a suspensão do voto como a imposição de sanções exigem o voto unânime dos restantes membros. E Orbán, o padrinho ideológico do novo rumo polaco, já disse que não o permitirá.
Deriva autoritária
Bruxelas parece dispor apenas da versão mais suave do Artigo 7: um aviso formal a Varsóvia, que precisa apenas de uma maioria de quatro quintos dos líderes reunidos em Conselho Europeu.
O alerta é importante e pode ferir o Partido Lei e Justiça (PiS), que está longe da popularidade de que goza o Fidesz de Orbán, na Hungria. Em todo o caso, o gesto prova aquilo que o presidente do PiS – e o homem forte que comanda o Governo polaco desde os bastidores–, Jeroslaw Kaczynski, afirmava há pouco mais de um ano, respondendo a uma crítica do vice-presidente da Comissão Europeia, Frans Timmermans, que advertia contra as reformas que Varsóvia operava no Tribunal Constitucional.
“A União Europeia pode, em teoria, ir muito mais longe, mas não irá”, lançou então. “Outros Estados-membros impedirão qualquer tipo de sanções.”
O homem que efetivamente governa a Polónia parece ignorar outros mecanismos europeus para o punir, como, por exemplo, um corte nas importantes ajudas comunitárias. Mas, pelo menos por enquanto, parece ter razão.
“Parece-me que estes valores que a União Europeia representa estão por aí à mão de semear”, queixava-se por estes dias o presidente do Instituto de Assuntos Políticos de Varsóvia, Jacek Kucharczyck, ao "Washington Post".
“Olhem simplesmente para a regressão que está a acontecer na Polónia e Hungria. E o que é que está Bruxelas a fazer? É completamente inofensiva. Nem sequer consegue proteger os seus próprios valores em casa.”
Alertas passados
Bruxelas dificilmente se pode queixar de falta de avisos.
Os gémeos Kaczynski já tinham demonstrado na sua primeira ascensão ao poder que estavam dispostos a promover uma refundação do país e perseguir o que dizem ser os resquícios do controlo soviético na Polónia. Os Kaczynski, Lech a Presidente e Jaroslaw a primeiro-ministro, falavam já em 2005 em “purificar” a Polónia. Se não eram os fantasmas comunistas que os preocupavam, era a elite liberal que manchava os valores nacionais.
O primeiro assalto dos Kaczynski falhou. Sem maioria, o governo do PiS caiu em 2007 para dar lugar ao partido de centro-direita do atual presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk. Assim como, de forma mais trágica e ainda hoje disputada pelo Governo, caiu o avião em que viajava Lech, no ano de 2010.
O segundo assalto está desenhado de raiz para imitar Viktor Orbán. Logo em 2011, Jaroslaw Kaczynski prometeu que os polacos “teriam Budapeste em Varsóvia”. Jaroslaw, que não ocupa nenhum posto oficial de governo, encontrou-se três vezes com Orbán no ano em que o PiS regressou ao poder, em 2016. “Deu o exemplo e agora seguimos o seu exemplo”, disse então o homem forte da Polónia do primeiro-ministro húngaro.
Rumo húngaro
Jaroslaw cumpriu-o. O seu PiS começou por atingir o Tribunal Constiuticonal, como aconteceu em Budapeste, confiante de que Andrzej Duda, o quase desconhecido que conseguiu chegar a presidente pelo poder do seu partido, deixaria passar os seus programas. O alvo seguinte tornou-se os meios de comunicação, especialmente maleáveis na Polónia pela grande dependência que têm da publicidade comprada pelo governo.
O ataque final estava marcado para esta semana, mas falhou.
A início, todos esperavam a aprovação de três documentos que deixariam efetivamente os tribunais à mercê do governo. O primeiro permitiria que o ministro da Justiça despedisse os magistrados do Supremo e os substituísse por pessoas leais ao PiS. O segundo entregaria ao executivo poder sobre o Conselho Nacional do Judicial, que aponta e promove juízes nas várias instâncias. "Vamos acabar com um Estado dentro do Estado", dizia o ministro polaco da Justiça, Zbigniew Ziobro, plasmando a ideia dos Kaczynski: o voto é rei e a separação de poderes é o imobilismo da vontade do povo.
Duda rejeitou os dois mais importantes documentos, numa manobra não antecipada pelos mandatários de Kaczynski, que prometia esta semana voltar à carga e fazer aprovar as mesmas reformas com textos diferentes. Duda, em todo o caso, aceitou o terceiro diploma, que dá autoridade ao governo para nomear os juízes-chefe em todos os tribunais de primeira instância.
Para Bruxelas é uma ameaça com retardador. Para a oposição é um alívio.
“O mais importante é que pela primeira vez o presidente desafiou a sua família política”, dizia esta semana Rafal Trzaskowski, do Plataforma Cívica (PO), o maior partido da oposição. “Antes, as suas manobras eram tíbias, mas hoje [Duda] demonstrou que pode pensar de forma independente. A sua manobra, apesar de não corresponder às todas as nossas exigências, abre todo o tipo de oportunidades.”