É ao quilómetro 56 da A1 que começamos a notar no céu uma tonalidade anormal: o azul dá lugar a um acastanhado. Só ao quilómetro 29 da A23, autoestrada que acabou por ser cortada pelas autoridades nos períodos de maior descontrolo das chamas, é possível perceber que se trata de fumo e que vem dos arredores da vila de Mação.
Ao avançarmos em direção ao foco do incêndio, vemos que o verde da vegetação deu lugar ao cinzento e é no meio das cinzas que encontramos a dona Olinda, que, apesar de tudo em volta ter ardido, anda a tratar da sua horta. A aldeia de Cimo do Vale tem sido fustigada pelo fogo desde o início do verão, mas a dona Olinda e o marido têm conseguido manter as chamas afastadas. «Tivemos muita ajuda dos bombeiros e destes aviões. A nossa sorte foi um carro de bombeiros que conseguiu descer até ali [aponta para o final da sua porção de terreno], se não tinha ardido tudo. Ai, fiquei tão aflita», diz-nos.
Este pequeno terreno tem estado a salvo do fogo devido à prevenção da dona Olinda e do marido: «O meu marido tem isto tudo limpo, como os senhores veem. De resto ninguém mais quer saber, ninguém limpa. Basta um fósforo para isto começar tudo outra vez».
Agora, custa a olhar para a paisagem que o fogo deixou: «Isto é uma grande tristeza», suspira levando as mãos à cara. Mas pode não ficar por aqui. O incêndio que agora lavra mais perto do centro de Mação e cuja coluna de fumo é visível por cima do monte queimado à frente da casa da dona Olinda continua a assustar. «Agora estou preocupada com o incêndio de lá. Isto todos os dias é uma dor, andamos sempre aflitos», confessa.
Mais à frente, Eiras é uma aldeia fantasma. À exceção de Purificação e Felismina, que estão sentadas na rua a comer melão, e de um pequeno cão que nos vai ladrando, não se vê vivalma. Os idosos de Eiras foram retirados da aldeia na noite anterior por precaução, diz-nos Felismina. «Era mais por causa do fumo», explica. « Eiras esteve numa situação preocupante, mas acho que já passou. Ainda está ali a espreitar daquele lado», diz Purificação apontando para o cimo de um dos montes que ladeia a aldeia e de onde se vê outra coluna de fumo. «O fogo esteve mesmo ali em cima, muito grande. Estávamos muito assustados, mas acabou por não ser nada. Estávamos era com medo de que ele descesse durante a noite. Acabou por não descer», conta Purificação entre as talhadas de melão.
A caminho da aldeia de Casas da Ribeira, o cenário de destruição adensa-se. Placas de trânsito destruídas, a madeira a crepitar, fumo a sair do chão e um silêncio que só é quebrado pelas sirenes dos bombeiros e pelo vento forte que se faz sentir. Lá em cima, a capela de Nossa Sra. Da Boa Viagem parece indiferente à destruição.
A maior parte das habitações de Casas da Ribeira estão destruídas e os bombeiros estão agora a tentar salvar as restantes e a impedir que haja reacendimentos na aldeia. O fogo dirige-se rapidamente para o centro de Mação, mas os bombeiros estão otimistas e dizem que a situação está «relativamente controlada». É aqui, junto à capela de Nosso Senhor dos Aflitos, que se organiza um pequeno posto de controlo para a coordenação daquela área. Um dos operacionais chama-nos a atenção justamente para a capela de Nosso Senhor dos Aflitos. Aqui, as chamas devoraram tudo em seu redor, mas a capela ficou intacta, sem qualquer dano. «As chamas lamberam-na mas ela nem chamuscada ficou», diz-nos um bombeiro. O fogo de um lado ao outro da capela em 10 segundos, mas não chegou para sequer sujar o branco da cal da capela.
É aqui neste posto de controlo improvisado, onde os bombeiros aproveitam para se refrescar, descansar e comer qualquer coisa, que encontramos Ana. A jovem surge ao pé dos bombeiros a distribuir garrafas de água e barras energéticas. Conta-nos que não é de Casas da Ribeira e que a sua aldeia, Santos, ficou destruída pelas chamas. «O fogo já passou pela minha aldeia e destruiu tudo. Por acaso a minha casa sobreviveu. Lá em Santos arderam algumas casas e palheiros», diz abafada pelo som dos helicópteros que sobrevoam a zona. Agora decidiu vir ajudar os bombeiros: «Temos de ajudar com o pouco que conseguimos».
Não há meio das chamas darem tréguas e, com o avançar das horas, a situação parece agora pior. As estradas secundárias são encerradas e somos encaminhados em direção ao centro de Mação.
Pelo caminho ainda encontramos Maria de Jesus e uma amiga a conversarem na rua enquanto observam todas as movimentações dos carros de bombeiros e Polícia. Aqui, numa rua já próxima do centro de Mação, o fumo é cada vez mais denso. «Claro que estamos receosas, então não vê as chamas aqui já ao pé das casas?», diz Maria de Jesus, recordando o fogo de 2003: «Na altura, chegou mesmo aqui ao fundo da rua. Este ano também vai chegar aqui, de certeza».
Perguntamos-lhes se não têm medo, com o fogo tão próximo das suas habitações e a resposta é rápida: «Não temos medo nenhum, o que é que a gente há de fazer? Temos de aguentar e ver o que isto dá». E, quando perguntamos se não pensam abandonar as suas casas para se protegerem das chamas, a resposta é ainda mais hostil: «Eu? Abandonar a minha casa? Era o que faltava! Eles que nem venham cá para a gente sair daqui. Mesmo que esteja aqui a arder perto eu não saio da minha casa». As últimas noites têm sido passadas em sobressalto. Maria de Jesus confessa que não tem conseguido dormir porque «os nervos não deixam». «A gente já nem sabe o que há de fazer», diz. A conversa acaba quando a sirene de um carro dos bombeiros que quer passar e não consegue faz estremecer toda a rua.
É junto às piscinas de Mação, mesmo no centro da vila, que todas as operações de combate a este incêndio são coordenadas. Aqui, o frenesim é grande. Ninguém faz declarações. Agentes da GNR, Proteção Civil e bombeiros de várias corporações correm em todas as direções, carros ziguezagueiam entre as pessoas que aqui se vão juntando e só se ouvem sirenes.
Deste alto vê-se agora uma cortina de fogo vermelho no horizonte que se vai aproximando. Mação está em peso junto ao posto de comando para ir tentando perceber as manobras das autoridades e para ir acompanhando a subida do fogo. A tensão é evidente em todos os que olham o horizonte. «Felizmente não há mortos», murmura um bombeiro. O fogo ficou controlado na tarde quinta-feira.