Primavera, verão, outono, inverno; primavera, verão, outono, inverno. Assim começa e assim acaba o documentário de Wim Wenders sobre a coreógrafa alemã Pina Bausch. No palco, primeiro, no campo, depois, os bailarinos vão repetindo pequenos gestos que representam as quatro estações enquanto caminham em fila indiana.
São gestos marcados, a ritmo certo, mas dir-se-ia com pouca dança. Pequenas narrativas, na maior parte das vezes ininteligíveis racionalmente, mas percetíveis através dos sentidos, onde a repetição joga um papel relevante. “Quase que não importa se uma obra encontra uma audiência que a compreenda. Temos de a fazer porque acreditamos que é o mais correto. Não estamos aqui apenas para agradar, não podemos deixar de desafiar o público”, dizia a coreógrafa.
Nesse sentido, Pina afirmava que “a repetição não era repetição” porque “a mesma ação faz-nos sentir completamente diferentes no final”. Para a coreógrafa alemã, nesse acumular dos mesmos gestos também há dança, também há vida, e Wenders não deixa de os filmar, ou não fosse este um projeto de cumplicidade entre o realizador de Düsseldorf e a coreógrafa de Wuppertal (nascida ao lado, em Solingen).
Tamanha era a cumplicidade que o realizador chegou a cancelar o documentário quando a coreógrafa faleceu inesperadamente em 2009. Não fosse a pressão dos bailarinos – essa extensa “família” de Pina que a venerava por lhe ter dado uma forma sublime de se exprimir – e nunca teria visto a luz do dia.
E o que temos é um objeto em que a dança está presente da maneira mais íntima, feito, e muito, da confissão dos bailarinos – na dança e nas palavras. Wenders encontra uma solução feliz para os depoimentos dos bailarinos, filma-lhes os rostos, mas coloca as suas vozes em off. Como se a voz viesse de dentro, diretamente dos pensamentos, que era como Pina queria que os seus bailarinos dançassem, a partir de dentro, das suas memórias, dos seus gestos.
“Tenho a impressão que era mais do que um ser humano quando estava com Pina”, diz uma bailarina; “a tua fragilidade é também a tua força”, afirma outra; outro explica que Pina era uma pintora, e os bailarinos as suas cores.
Pina trabalhava a dança com os seus bailarinos, trabalhava com os seus gestos e as suas memórias. Pedia aos bailarinos que lhe dessem um gesto que representasse determinado sentimento e disso fazia uma coreografia. Agarrava num gesto natural do outro e transformava-o em linguagem para o seu corpo dançar. Agarrava no natural e emprestava-lhe a narrativa.
A relação com o outro é fundamental na sua dança. Daí que nas suas coreografias haja momentos em que os bailarinos se entregam de uma forma tão extrema que precisam de acreditar com quem trabalham para se exporem tão violentamente. A distância entre a dança e o acidente está nas mãos que os apanham, nas mãos que desviam as cadeiras do seu caminho cego.
Wenders filma tudo com um carinho de admirador. Sublinha o importante, trabalha a profundidade como um escultor e mostra como o 3D pode ir para lá da brincadeira para adolescentes dos blockbusters norte-americanos. Aquilo que o realizador alemão faz é aproveitar ao máximo a nova dimensão que a técnica lhe permite. E colocar essa profundidade ao serviço das coreografias de Pina Bausch. E, provavelmente, não haverá melhor elogio a este documentário de Wenders do que dizer que, mesmo a duas dimensões, essa profundidade se sente de forma marcante.
A dança nunca mais será a mesma depois da dança-teatro da coreografa de Wuppertal, mesmo para quem apenas dela é espetador. E “Café Müller” continuará a ser uma das maiores referências da coreografia moderna. “Pina” é o documentário que faltava.