De repente parecia que o calor abrasador daquela tarde tinha mandado parar todos os comboios e não havia mais passageiros com quem falar. À porta da estação de Santa Apolónia havia dezenas de pombos a esgravatar migalhas no chão, um senhor a vender gelados, dois jovens a promover uma campanha da Unicef, um senhor com um ar ‘bebido’ que queria uma sombra para voltar a ganhar equilíbrio e eu. Turistas nem vê-los.
Ficámos assim ainda durante uns bons 10 minutos – que com os termómetros a marcarem 38 graus pareceram uma eternidade – até que a vi, de embrulho de papel pardo na mão, mochila às costas e sandálias nos pés. As rastas loiras e compridas, pele clara e sardenta, mas bronzeada do sol e ar de quem tinha acabado de chegar do Boom Festival. Tudo nela parecia dizer que não era de cá.
Fiz a abordagem do costume: “Olá, o meu nome é Joana e sou jornalista. Estou a fazer uma peça sobre os viajantes de Santa Apolónia e as suas histórias”. Abriu o sorriso e também se apresentou: “Chamo-me Linda, tenho 32 anos e sou de Budapeste”. Perguntei-lhe o que a trazia por cá e contou-me que chegou a viver em Portugal um ano, mas que desta vez ficava só três semanas.
Explicou-me que tinha acabado de vir de um festival tipo Boom, [sorri] também em Idanha-a-Nova, e que agora estava em Lisboa para preparar uma exposição do seu projeto no LX Factory, ainda antes de ir para outro festival em Elvas – para o qual foi convidada também por causa do tal projeto.
Fiz a pergunta óbvia: mas afinal o que é que Linda faz? Riu-se como quem sabe que a resposta não é fácil de dar. “Eu gravo os sonhos das pessoas”, disse-me, explicando que capta o áudio de pessoas a contarem os seus próprios sonhos (quanto mais pormenores melhor) e que depois vários artistas, como pintores e ilustradores, fazem uma interpretação do que ouviram.
E nós, será que temos os mesmos sonhos que os húngaros e que outros povos europeus? “Estou apaixonada pelos portugueses, têm uma mente muito aberta”, afirmou. “Em Portugal, a moeda de troca não é o dinheiro, são as ideias”.
Apesar de ser o que mais destacou, Linda não se rendeu apenas às pessoas. Contou que adora a natureza do país, e que Portugal tinha muitos “segredos naturais guardados”, dando como exemplo a Serra da Arrábida, que considera um dos sítios mais bonitos onde já esteve, assim como Sintra, outro local que elogiou. Da comida destaca o peixe.
Preparei-me para tirar a fotografia final, quando ela me disse: “E que tal um sonho? Trouxe o meu material de gravação. Contas-me um sonho teu”? Fiquei muito atrapalhada, mas não tive coragem de dizer que não, principalmente depois da gentileza para com uma estranha que lhe pediu para partilhar coisas da sua vida íntima. Afinal ela só me estava a pedir o mesmo.
Envergonhada, falei para o microfone o mais depressa que o meu inglês permitiu e lá contei o meu sonho. No fim, quando Linda guardou o microfone não pude deixar de respirar de alívio, mas a minha cabeça só pensava: ‘Onde é que isto vai passar? Oh meu Deus, mas quem é que vai ouvir isto?’. Enfim, já está uma história para contar aos leitores do i e aos netos.
No momento em que íamos virar costas, Linda perguntou-me onde é que se apanhava o 728 para Alcântara. Era a mesma onde eu tinha saído para chegar a Santa Apolónia, pelo que me ofereci para a levar lá. Depois de uns segundos caladas, cada uma estava a tentar assimilar o que se tinha passado nos últimos 15 minutos, Linda cortou o silêncio e atirou: “No fundo, nós temos trabalhos muito parecidos. Tu pedes às pessoas que elas contem a sua vida, ou seja é o seu lado consciente. Eu peço que me contem os seus sonhos, ou seja é o seu lado subconsciente”, acrescentou. Eu ri-me e pensei que ela até tinha razão.