O Homem Tranquilo. Uma comédia romântica de barba rija irlandesa

Bebem, lutam, bebem, cantam, enamoram-se e bebem mais e lutam mais um pouco. John Ford faz uma comédia romântica irlandesa onde a cerveja corre 

Esperar que uma comédia romântica de John Ford fosse algo delicodoce a puxar ao sentimentalismo seria como imaginar John Wayne a fazer anúncios de maquilhagem. Os filmes de Ford são masculinos e, quando são românticos, as palavras não saem em conjuntos poéticos de sedução. São românticos porque há homens que gostam de mulheres e mulheres que gostam de homens, e uns e outros honram esse compromisso – e honram-no com os pulsos, se for caso disso. O romantismo está em pequenos gestos, na rudeza cómica de certas ações, nos olhares.

“O Homem Tranquilo” é um filme sobre a Irlanda mítica, de homens e mulheres fortes, da rudeza orgulhosa dos costumes, da tradição e do peso forte da Igreja Católica (mas uma igreja feita dos mesmos homens, tão orgulhosa como eles e tão capaz de olhar para o lado quando se trata de pequenos e inofensivos pecadilhos quotidianos).

E como não podia deixar de ser, nestaIrlanda de Ford (que é uma Irlanda que honra os seus mitos e, como tal, é mais certa na mitologia que concreta no realismo), os homens bebem rios e rios de cerveja e lutam bravamente e de forma honrada com os punhos levantados por qualquer coisa que acham que lhes afetou, afeta ou pode vir a afetar a honra.
É também uma Irlanda de costumes arreigados no que diz respeito ao cortejar das mulheres – essa carroça de Michaleen Oge Flynn (o casamenteiro bêbado interpretado por Barry Fitzgerald e que está no centro de grande parte das cenas cómicas deste filme) para passear os comprometidos, que não se podem tocar em nenhum momento.

Parte essencial deste filme é a lindíssima fotografia de Winton C. Hoch (curiosamente, tal como Ford, conseguiu aqui o quarto e último Óscar da carreira, o seu segundo com o realizador, depois desse grande western que é “She Wore a Yellow Ribbon/Os Dominadores”). Hoch pinta a paisagem como um naturalista inglês, deixa que esta surja em todo o seu fulgor de verdes intensos e acrescenta-lhe pinceladas fortes de vermelho e azul. Um dos momentos mais belos do filme é quando Sean Thornton se cruza pela primeira vez com Mary Kate Danaher: sabemos pelas convenções cinematográficas que aqueles dois haverão de ficar juntos, mas sabemos ainda de forma mais acentuada porque Hoch deu a Maureen O’Hara uma saia de intenso vermelho que condiz com a gravata de John Wayne.

E o que dizer dessas flores de vermelho quase artificial que não são entregues quando o pedido da mão de Mary Kate acaba na intransigência teimosa do irmão (interpretado por Victor MacLaglen, um dos maiores atores secundários que o cinema norte-americano alguma vez teve)? Outras mais vermelhas ainda acabarão na mesa do casal, símbolo de uma paixão arrebatadora entre dois seres temperamentais.

Thornton é um pugilista americano que regressa à remota terra irlandesa onde nasceu depois de matar um homem em combate. Pendurou as luvas e jurou nunca mais voltar a lutar com ninguém – promessa que, numa terra onde a honra tem de ser defendida a punhos, serve de motor da ação. Compra a antiga casa onde nasceu e remodela-a (recuperando um esplendor que esta, se calhar, nunca teve), apaixonando-se pelo lugar, pela nova vida e pela irmã do homem que queria comprar a casa que ele comprou.

Com esta história, Ford, junto com a sua “família” cinematográfica, constrói um filme sobre a Irlanda que corresponde à noção que sempre temos do povo irlandês, orgulhoso, honrado, senhor da sua independência, belicoso na defesa dos princípios, generoso e sempre disposto a ajudar, cómico e beberrão.

Ford nunca carrega muito nas tintas da redenção do pugilista, embora a Irlanda funcione aqui como uma espécie de paraíso remoto para recuperar um homem das marcas que a morte lhe deixou. E como é Ford, a cura teria de chegar de forma viril –- à força de punhos.