Se a escrita de Sam Shepard fosse música, seria o equivalente à americana, essa mistura de vários géneros musicais que representa a essência do ser americano. As paisagens rudes de homens rudes, as zonas de fronteira onde se cruzam falhados, desesperados, foragidos, onde as palavras são parcas mas certeiras (ou não, porque podem estar entarameladas pelo álcool). Onde os homens mascam tabaco ou, se não mascam, é como se estivessem a preparar-se para cuspir qualquer coisa castanha para o chão.
Shepard captava o lado de lá do sonho americano, as zonas de sombra onde estão os que tentaram e não conseguiram, ou que simplesmente nem tentaram, por preguiça, incapacidade ou desprezo. As fragilidades, os medos, a fragmentação social, o falhanço, as sombras – como um naturalista do pesadelo americano.
“Paris, Texas”, o filme que escreveu para Wim Wenders e que venceu a Palma de Ouro em Cannes, é um desses retratos da América marcada pela vida, com uma personagem que deambula pela paisagem poeirenta e desértica do sul dos Estados Unidos, com os passos de quem parece ter um propósito mas que, afinal, são os passos de quem nunca irá (nem quer) chegar a nenhum lado. Travis, o protagonista, é um esgotado da vida, e o diálogo de costas no peep show é um dos momentos mais sublimes (com um romantismo trazido do século xix, amor fatídico que corrói aquele que ama) da história do cinema: “Ele amava-a mais do que lhe parecia possível. Não aguentava estar longe dela durante o dia, quando ia trabalhar. Acabou por se despedir. Só para poder estar em casa com ela. A seguir arranjava outro trabalho, quando o dinheiro acabava, e depois despedia-se outra vez. Mas, rapidamente, ela começou a preocupar-se.”
A esta preocupação ou, melhor dizendo, do que está para lá da preocupação quando a realidade destrói a felicidade, dedicou Sam Shepard grande parte da sua obra. Normalmente, a paisagem é a da fronteira, como a de “Paris, Texas”, a das grandes paisagens que oprimem. Shepard dizia que não ia para o deserto para encontrar a paz porque não havia paz no deserto, e ele sabia bem do que estava a falar.
Durante mais de cinco décadas, estabeleceu-se como um dos dramaturgos de maior referência dos Estados Unidos. Largou uma carreira na agricultura no princípio dos anos 1960 para se dedicar a escrever para teatro, influenciado por Samuel Beckett e ciente de não haver, na altura, uma voz teatral nos EUA: “Naquele tempo havia uma escassez no teatro americano. Não se passava nada. A arte americana estava esfomeada”, contava em 2014, numa entrevista ao “Guardian”.
As peças de teatro e os contos nascem das tensões e crises da América do século xx, sejam elas ontológicas, existenciais ou culturais. Imagens poéticas, elementos surrealistas, humor negro e essas personagens desenraizadas que parecem pertencer à paisagem, espinhosas como os catos e empoeiradas como os capôs dos carros, com restos de fast food a cobrir os tapetes.
Com uma quarentena de peças (44, para ser mais exato), muitos contos, ensaios, argumentos de cinema, um prémio Pulitzer obtido em 1979 pela sua peça “Buried Child”, Sam Shepard construiu uma cidade literária carregada de pó e sonhos caídos, de famílias carregadas de segredos. E álcool. Na referida entrevista ao “Guardian” diz, entre risos, que quando não escrevia entretinha-se a beber.
Beber é algo a que se entregam grande parte das suas personagens. Porque gostam, porque precisam, porque querem esquecer, porque sim e porque não. Beber é um passatempo como outro qualquer, às vezes o único passatempo. Beber entorpece, ajuda a aguentar o impacto dos dias aziagos, que são quase todos.
Essas paisagens do sul da América são as paisagens da sua infância. Nasceu em 1943 numa base militar do Illinois e a sua infância foi passada entre bases militares – Cucamonga, Duarte, Califórnia (nas franjas do deserto do Mojave), Texas, Novo México. O pai, piloto na Força Aérea, conseguiu uma bolsa Fulbright depois da II Guerra Mundial e foi estudar. Ainda viveu um tempo na Colômbia antes de dar aulas de Espanhol na secundária.
Portanto, as deambulações pelo sul deixaram marcas fortes em Sam Shepard. Tal como o lado familiar paterno, onde o alcoolismo foi passando de geração em geração como doença hereditária.
“A minha história com a bebida vem da escola secundária. Naquele tempo havia muita benzedrina [anfetaminas] a circular e, como vivíamos junto à fronteira com o México, cruzava a fronteira, comprava um saco de bennies e bebia vinho barato. Speed e álcool combinados fazem-nos sentir… omnipotentes. Não se sente nenhuma dor. Estive envolvido em vários acidentes de carro em que ainda não percebi como sobrevivi”, confessou à “Paris Review”.
Álcool, errância, solidão, as grandes paisagens do sul dos EUA, as estradas a perder de vista e o automóvel como elemento essencial da liberdade. O sonho americano, mesmo aquele que se torna pesadelo, inclui sempre o automóvel. Há um conto em que uma mulher cruza o país com as cinzas da mãe, numa urna, no banco de trás do carro.
Sobre a morte disse um dia “não passo um dia sem pensar nisso. Mas foi sempre assim. Todos vivemos assombrados por isso, de uma forma ou de outra. E é a coisa mais fácil do mundo fazê-la desaparecer, basta pedir um cappuccino”. Sai um cappuccino, por favor!