O cineasta russo Lev Kuleshov levou a cabo uma experiência entre os anos 1910 e 1920 que ficou conhecida como o efeito Kuleshov. Trata-se de um efeito de montagem que leva o espetador a interpretar as emoções de um rosto consoante a imagem que viu antes. O cineasta juntou a mesma foto do rosto impassível do ator Ivan Mosjoukine sucessivamente a um prato de sopa, uma rapariga num caixão, uma mulher num divã. Mostrado o filme a uma audiência, esta pensava que as expressões de Mosjoukine mudavam consoante a imagem anterior, mostrando a fome, a dor e o desejo.
Ao rever “Férias em Roma” lembrei-me da experiência de Kuleshov quando se formava na minha mente uma teoria semelhante em relação ao sorriso de Audrey Hepburn. Seja qual for a imagem que se junte depois de um sorriso da atriz, aquela ganha outra dimensão: traz esperança a um campo de refugiados, uma boia a um náufrago, bom senso à Coreia do Norte (ou um novo corte de cabelo a Kim Jong–un). Em suma, tudo o que vem a seguir a um sorriso de Audrey Hepburn sofre de um crescimento exponencial e William Wyler sabe como explorar muito bem o fator sorriso em “Férias em Roma”.
Experiente e conhecedor, o realizador é parcimonioso na distribuição dos sorrisos, não vá a sobredosagem afetar o efeito; e a atriz, ciente do poder desse sorriso, controla-o, não o lança por dá aquela palha, vai-lhe dando um pouco mais de brilho à medida que essas 24 horas de anonimato em Roma lhe devolvem um pouco da felicidade perdida entre os afazeres de princesa, feitos de receções aborrecidas, discursos amorfos e repetidos, cerimoniosas maratonas de beija-mão.
O argumento, que parte de uma história de Dalton Trumbo – as perseguições do mccarthismo levaram-no à lista negra de Hollywood e o seu nome não apareceu inicialmente na ficha técnica do filme –, é muito simples: a princesa de um país europeu não especificado, cansada de uma vida protocolar de agenda preenchida com eventos aborrecidos, foge um dia de um palácio em Roma e acaba na casa de um jornalista americano (Gregory Peck) que luta para conseguir sobreviver na capital italiana. Por 24 horas, a princesa Ann vai fingir que não é princesa e Joe Bradley fingirá que não é jornalista e que não a reconheceu, primeiro porque quer arranjar uma cacha que lhe valerá 5 mil dólares, depois porque se enamora daquele enorme sorriso – ele e todos nós, mas isso já tinha dito.
“Férias em Roma” é um filme de descoberta – da princesa sobre os sons, os cheiros, as pequenas coisas do mundo, da vida para lá do protocolo e dos reposteiros; do jornalista, sobre a capacidade de alguém ainda ser feliz com as pequenas coisas do mundo; dos dois, sobre o amor.
O contraste entre esse homem alto, sério, de figura proeminente, com 37 anos, e essa mulher de porte altivo, olhos arregalados, figura esguia e sorriso de desarmar taciturnos, de 24 anos, é um dos grandes pilares deste filme, onde a cidade de Roma (mesmo a de bilhete postal, Coliseu, Fontana di Trevi, Castelo de Sant’Angelo) cumpre a função não despicienda de palco para o amor fugaz (daí eterno) entre a princesa e o plebeu.
O filme está cheio de bocadinhos antológicos – a cena do sapato perdido na cerimónia, o rosto de Ann ao acordar no quarto de Joe, o célebre passeio/fuga de Vespa, a Boca da Verdade, a subtileza na troca de olhares na entrevista coletiva da princesa regressada ao espartilho da sua vida real e o sequente apertar de mãos para conhecer alguns jornalistas –, embora o seu grande trunfo seja o de ser um conto de fadas ao contrário, o da princesa que pode um dia ser ninguém. Lá está, amor é só Roma ao contrário.