Olhei o título do livro de Luís Conceição e decidi, de imediato, lançar-lhe (me) um desafio: desvendar primeiro a linhagem, a estirpe a que Prosápias Geométricas pertence. Aconteceu que à medida que avançava no livro ia encontrando na genealogia da sua árvore literária algumas ascendências facilmente perceptíveis. A surrealista foi-me dada ora por uma enumeração inusitada, como acontece no poema em que o poeta a usa para traduzir a precariedade da vida e sua efemeridade.
Ora dada por um sopro surrealizante, provindo do logos, como no texto em que o poeta ensaia fixar em objectos de arte
pequenas coisas sem nome e sem abrigo, pontes sem margens – imagens de fontes desabrigadas – tectos etéreos – limites – fronteiras – abismos – torneiras jorrando caudais dedais de cauda a jorro torneando fontes de tépidas memórias de frontes fétidas como pontes descalças, sem alças. Picos de montes despidos erguidos torcidos… E tudo isto continua a mover-se.
Vitorino Nemésio escreveu no prefácio ao seu livro “Poesia” (1935-40) o seguinte: “O romantismo afectou e reviu todo o património poético ocidental, de Homero a Dante como de Dante a Shelley e – ainda hoje que tão longe dos românticos nos cremos – como de Shelley a Rilke.” Ouso, sem grande temeridade, afirmar que a leitura de “Prosápias Geométricas” me mostrou que posso estender a asserção de Nemésio até Luís Conceição. Inspirado na nota escrita por António Maria Lisboa na margem de um livro – “como se haja poemas que não sejam de amor” –, recuperada por Herberto Helder para epígrafe de um livro seu, após a leitura de “Prosápias Geométricas”, de Luís Conceição, acrescento: como se hoje houvesse poemas em que não ressoasse o sopro do estro romântico.
Se a leitura de um livro é sempre uma sua re-escrita, produzida com o auxílio de um infinidade de leituras pelo leitor anteriormente realizadas, então, após a inscrição de Prosápias Geométricas na talagarça da poesia, gostaria agora de dizer que Luís Conceição nos oferece, neste seu livro, toados, ritmos, consonâncias, aliterações, sonoridades que identificam o poeta como um artesão, um fabbro, um poetes, e a poesia como um poein, um fazer. Na verdade, a voz que fala nos poemas de Prosápias Geométricas é a de um puro artífice que tenta com a sua escrita que o que o cerca e impressiona renasça numa nova forma, a do poema, e, se possível, mais conseguida, mais bela que a primitiva.
Luís Conceição diz-nos ainda que a poesia é um instrumento de arremesso! e eu acrescento que cada poema seu se assume como uma canção que estilhaça o silêncio de um mundo cheio de dejectos e pecados que obriga o poeta a confessar:
Hoje penso em tudo aquilo que penso
para me manter esquecido dos sonhos, para que a realidade
pese sobre mim.
Uma realidade baça, estirada no vazio das horas (construo coisas e espaços que antes não existiam. Sou um /predador do vazio.) que obriga o poeta a passar e repassar o compasso nas curvas do tempo de um novo dia. Alegria. Conquista difícil de alcançar, o poeta o confessa: passo e repasso o compasso.
Porém, não é só a realidade doente de um mundo onde a alegria a custo desponta aquela com que o poeta lida pois ele sabe que
Toda a imagem é transponível em realidade. Não há nada
de mágico nisto, a não ser a possibilidade da invenção da
imagem, ou da invenção mágica do real enquanto possível.
Eis que “Prosápias Geométricas” coloca o leitor sob uma tensão gerada pelo mundo lá fora em contraponto ao mundo criado pela imaginação do poeta quando sobre ele o vazio se abate. Ele o diz: Em determinadas alturas sentimos o vazio.
E acrescenta:
É nos abismos da dúvida que as
coisas se tornam mais claras e decisivas. É nos penhascos
da vida que a existência se torna mais sólida, que os vazios
recortam as formas, que o silêncio nos devolve a palavra!
No fulgor desse momento, o desenhador e o arquitecto dão lugar ao poeta e no papel em vez de linhas e volumes surgem palavras, procuradas com afinco pela sua qualidade e pela música das suas sílabas, para com elas se erguerem as arquitraves da harmonia assente na certeza do poeta de que olhar um polvo nos olhos é mais interessante do que desviar o olhar dos olhos de alguém que, no metro, vai sentado à nossa frente.
Depois deste percurso por “Prosápias Geométricas”, gostaria ainda de assinalar que na poesia de Luís Conceição há uma paixão telúrica, próxima da de Afonso Duarte, em momentos como este:
Eu não sei. Gosto do solo suave, repleto de ervas e daquela
terra macia em que os pés se enterram para descobrir os
passos, tensão sobre tensão, para que o chão nos chupe os
movimentos e nos colha a pressão serena dos nossos talentos;
se essa terra é barro, que seja também a massa plástica do
desenho dos nossos sonhos.
Sonhos que também podem ser materializados em palavras por Luís Conceição. Ouçamos:
Gosto da geometria da língua e das palavras bem alinhadas
num texto. Gosto dos sons, dos ritmos e das emoções que
as frases desenham. Gosto dos desenhos ditos, dos desenhos
escritos e dos desenhos riscados na rugosidade lenta do papel.
O poeta proclama também, à maneira de Rimbaud e de Marx, uma intensa vontade de mudar a vida e transformar o mundo, num poema de outubro de 2012:
Erguer da náusea a voz e cuspir nos sulcos do carreiro
dos governantes. Irromper as ervas nos valados: nada será
como foi… exprima-se a raiva, que venham os navegantes,
os lavagantes, os elefantes, os hierofantes, os amantes,
as fêmeas dos homens e os machos das fêmeas dos amantes e
que nada fique como era dantes!
Creio ser pertinente assinalar que o poeta, que algures se refere ao pensamento cartesiano, põe em questão o movimento e interroga-se:
quando trilhamos um espaço ainda virgem pode-se dizer que
Seguimos um caminho?
O sujeito poético assume a identidade profissional do sujeito empírico – arquitecto e professor de arquitectura – e responde que sim, pois acredita
que existe uma geometria do solo estampada na
superfície da terra que nos quer orientar…
Esta breve fala sobre “Prosápias Geométricas” aproxima-se do final e é este o momento para dizer que nesta re-escrita do livro prescindimos de quaisquer incursões pela teoria da literatura, pela distinção entre prosa e poesia (apesar de nos termos lembrado de Mallarmé), pela defesa de linhas aproximativas entre o professor de Físico-Química, Rómulo de Carvalho, e o poeta António Gedeão em paralelo com o professor de arquitectura Luís Conceição e o poeta de “Prosápias Geométricas”, mas não deixaremos de assinalar que neste livro quer a ironia quer uma discreta tonalidade lúdica se quadram bem com a recôndita disforia do último poema em que o homem é visto como um ser para a morte e por isso o poeta nos diz que quando se parte de vez/ saem de nós os anjos de asas abertas rumo ao eclipse infinito, mas enquanto isso não acontece, a atenção do poeta mantém-se virada para o mundo e quando o amor o visita, ele e a amada serão polígonos irregulares. Mas com afecto.