Tudo começa por ser mais ou menos frenético, como essa megalópole mexicana cheia de carros e ruídos, para depois ir abrandando, abrandando até à implosão numa noite de sexo a três que é onde a fantasia é esmurrada pela realidade e tudo deixa de ser o que sempre foi. Entre uma coisa e outra, faz Alfonso Cuarón um road movie de iniciação, juntando uma mulher que se despede e dois adolescentes que disfarçam muito do que não sabem com um chorrilho de coisas ditas e de outras tantas por esconder.
Tenoch e Julio são amigos quase irmãos, apesar de o primeiro ser filho de ricos com ligações ao poder e de o segundo não conhecer o pai e viver apenas com a mãe, secretária numa grande empresa. E o primeiro, quando vai a casa do amigo, levanta a tampa da sanita com o pé; e o segundo acende velas na casa de banho para que não se sinta o cheiro. São amigos quase irmãos, com uma série de princípios de amizade que sabem entoar de cor em uníssono e não cumprir em segredo. E os segredos definem-nos melhor.
Luisa acredita que os dois são diferentes, adolescentes, sem dúvida, mas com algo mais profundo. Embarca na viagem que lhe haviam sugerido como piada de festa e nunca pensavam concretizar. A sugestão era tão vazia que o pequeno pedaço de paraíso perdido do destino tinham-no inventado ali mesmo, com o primeiro nome que lhes passou pela cabeça: Boca do Céu. Mais tarde acabarão por perceber que realmente existe o que haviam criado no momento.
Esse é, aliás, um dos grandes trunfos do filme dos irmãos Cuarón (Carlos escreve, Alfonso realiza), a forma como a fantasia vai levando choques de realidade. Como se fossem duas estradas paralelas que de vez em quando se intercetam – da real saem, por vezes, veículos descontrolados que chocam dolorosamente com a fantasia. São pedaços de voz off em tom documental que contextualizam, explicam, segredam, desdizem – uma espécie de voz da consciência sem censura.
A rodagem do filme foi feita segundo a ordem da montagem e o desenvolvimento da ação é para os atores o mesmo que para as suas personagens. A história só avança até ao recuar definitivo. Ao passar a linha para o lado de lá da sinceridade, ao deixar-se levar apenas pelos instintos, ao romper as amarras das personas sociais que usam, a vida nunca mais pode ser a mesma e uma aparentemente sólida amizade pode romper-se em fanicos.
Luisa tem todos os trunfos na mão. É mais velha, mais experiente, mais instintiva, e não tem nada a perder. Da viagem que empreende não conta regressar e quem se aventura para o lado de lá do espelho sem bilhete de regresso está mais livre para se libertar, passe o pleonasmo. O jogo que joga com os dois jovens é, ao mesmo tempo, terno e cruel, porque lhes abre as portas para uma realidade escondida pela fantasia. E eles, julgando saber ao que iam, acabam tão ou mais desorientados que ao olharem o mapa para encontrar na geografia que desconhecem o lugar que inventaram conhecido.
No dia em que a amizade se implode numa noite de sexo, Luisa tem a última conversa com o marido que deixou depois da enésima traição – que se chama Jano, como o deus das duas caras (aliás, os nomes das personagens são uma segunda linha de leitura: Luisa é Cortés como o conquistador, Tenoch era um caudilho asteca, Julio é Zapata como Emiliano, o revolucionário). A câmara filma-a na cabina telefónica, luz acesa, tentando acalmar a culpa de um marido chorão; na janela da outra cabina, vê-se o reflexo dos dois amigos entusiasmados, jogando matraquilhos . É o momento em que se entende que a fantasia chegou ao limite, a partir dali é morrer.