Cinco dias depois de ter sido extinto o incêndio que lavrou o concelho de Mação ainda se sente o cheiro intenso a queimado. E não é para menos. Arderam 18 mil hectares, metade do concelho, num incêndio que durou quatro dias, e deflagrou na Sertã. Há agora respostas exigidas pelo presidente da Câmara de Mação. Em entrevista ao i, Vasco Estrela fez saber que pediu à Autoridade da Proteção Civil a fita do tempo do incêndio que lavrou os três concelhos vizinhos – Mação, Proença a Nova e Sertã. Será aqui que o autarca vai ver se se confirmam as suas suspeitas: houve desvios de meios terrestres e aéreos.
“Não quero estabelecer nexo de causalidade” mas, frisa Vasco Estrela, “no concelho de Mação arderam 18 mil hectares, no da Sertã mil e em Proença a Nova cinco mil”.
“Há decisões que foram tomadas e têm de haver justificações”, avisa o autarca do PSD. E caso se comprove que esse desvio de meios tenha tido consequências, Vasco Estrela ameaça: “Iremos até às últimas consequências para saber a verdade”, admitindo avançar com queixa junto das entidades competentes.
Está fechado o levantamento sobre os prejuízos do incêndio?
Já. Uma parte já está, daquilo que são as primeiras habitações. Temos 14 primeiras habitações ardidas, com um prejuízo superior a 500 mil euros, no total. Muitas delas não estão em destruição completa, são pequenos e médios prejuízos e reparações. Para já, o resultado é este. Falta fazer todo o outro levantamento para quantificar aquilo que são armazéns, pavilhões agrícolas, anexos das habitações, empresas, viaturas, departamentos municipais.
Somando tudo isso qual será o total de prejuízo?
Neste momento ainda não quero avançar números.
Houve dez feridos, não foi?
Sim. Houve um bombeiro ferido, houve também um funcionário da câmara que se sentiu mal e teve de ser hospitalizado. Houve ainda outras patologias inerentes ao fogo, como intoxicações ou ataques de ansiedade.
O que está a ser feito pelas autoridades para cobrir todos esses prejuízos?
O que nos foi pedido pelo presidente da Unidade de Missão para a Valorização do Interior e pelo gabinete do primeiro-ministro foi que fosse feito um levantamento das primeiras habitações, cujo documento foi enviado para Lisboa esta noite [passada segunda-feira], para poderem ter a noção daquilo que estava em causa. O que nos foi transmitido é que o primeiro-ministro iria estar disponível para contribuir ou pagar a totalidade do prejuízos, mas não ficou bem esclarecido.
Só das primeiras habitações?
Só as primeiras habitações.
E as de segunda habitação?
Sobre isso não tenho nenhuma informação de ninguém.
Quantas arderam?
Tantas ou mais do que as primeiras habitações. Esse levantamento está a ser feito. Temos também uma série da habitações devolutas, que estavam perfeitamente desabitadas e sem condições de habitabilidade. Esse levantamento ainda não está totalmente terminado. Além disso, estão também no terreno equipas do Ministério da Agricultura, a fazer o levantamento junto dos agricultores e das explorações pecuárias, agrícolas e outras para se perceber os prejuízos.
Houve empresas atingidas?
Sim. Direta ou indiretamente e temos também produtores de legumes e frutas. Esse levantamento também está agora a ser feito pelos técnicos do Ministério da Agricultura. Há ainda os problemas das pessoas com animais que têm dificuldades para os alimentar.
E o acompanhamento das pessoas. Como está a ser feito?
A Segurança Social está no terreno a acompanhar os casos mais preementes. Também o gabinete de ação social da câmara municipal, o contrato local de desenvolvimento social, estão a fazer um acompanhamento junto das pessoas que foram mais atingidas e as necessidades que cada uma tem, sob os mais variados pontos de vista, para tentarmos minorar os problemas.
Apelou ao governo que decretasse o estado de calamidade pública. Porquê?
Tornam-se mais céleres os pagamentos, podemos ter acesso a outro tipo de financiamento e de fundos, como o fundo de solidariedade. Também há alguns procedimentos administrativos que se tornam mais ágeis e mais fáceis. É o caso de procedimentos concursais. No fundo, é o reconhecimento que houve aqui uma situação, infelizmente, excecional. Em nenhum local é normal que ardam 18 mil hectares, que cerca de 50 aldeias sejam atingidas, 30 aldeias sejam evacuadas, que arda este número de casas. Perante este cenário deverá ser reconhecido o estatuto, infeliz, de calamidade pública.
A resposta do governo no pós-incêndio tem sido a adequada?
Os serviços da administração do Estado, que representam o governo, têm sido extraordinários e impecáveis. Os serviços da segurança social, de saúde, no durante e pós-incêndio, também o Ministério da Agricultura de forma muito célere, estão no terreno. Sob esse ponto de vista não tenho nenhuma reclamação a fazer.
E estão presentes no dia a dia das pessoas?
As pessoas têm tido apoio e, neste momento, que seja do meu conhecimento os serviços do Estado, sejam eles da administração local ou central, estão a acompanhar as pessoas. Não há aqui um abandono das pessoas à sua sorte. De todo. Não existe.
Quais foram os maiores problemas no terreno, durante o combate ao incêndio?
Das inúmeras horas que passei por lá fiquei com a sensação que parece ter havido alguma dispersão de meios no teatro de operações. E parece não ter sido o mais correto relativamente àquilo que se estava a passar no terreno. Daí que tenha pedido à Proteção Civil que, até ao início da próxima semana, nos seja disponibilizado o relatório, a fita do tempo, deste incêndio.
O que estranhou?
Os meios podiam ter estado em alguns locais que fariam mais sentido.
Que meios?
Meios aéreos e meios terrestres. E concretizo. Não quero estabelecer nexo de causalidade entre os meios que estavam no terreno e aquilo que ardeu. Mas no incêndio que começou na Sertã e percorreu três concelhos, no concelho de Mação arderam 18 mil hectares, no da Sertã mil e em Proença a Nova cinco mil. Temos de perceber como é que foram feitas as repartições de meios e ver se há algum nexo de causalidade ou não.
Houve desvio de meios para esses dois concelhos?
A determinada altura houve. A Autoridade Nacional da Proteção Civil terá de justificar se houve ou se não houve. Aquilo que me foi dado a perceber é que sim.
De onde teve essa perceção?
No local. Naquilo que me era transmitido pelo meu comandante dos bombeiros e pelas pessoas que estavam no terreno. Estava no local, não estava no meu gabinete.
A ser comprovado esse desvio, o que admite fazer?
Admito que as pessoas que tomaram decisões de desviar meios de um local para o outro terão tido alguma justificação para o fazer. Ou a inspeção do MAI ou o presidente da ANPC, terão de avaliar se foram tomadas todas as medidas adequadas.
Admite avançar com algum tipo de queixa?
Sim. Claramente que sim. Iremos até às últimas consequências para saber a verdade do que se passou aqui. Não estou com isto a dizer que alguém cometeu algum crime, ou foi negligente ou quis prejudicar o concelho de Mação. Mas, há decisões que foram tomadas e têm de haver justificações.
Quais?
Dizerem que os meios que estão no terreno são suficientes, ou que estão mais de mil homens no terreno, quando houve 50 aldeias atingidas pelo fogo. E que grande parte destas aldeias não tenham tido ninguém para as defender. Se é assim que imagem de segurança é que estamos a dar às pessoas? Então e se os meios não fossem suficientes? Eram cem aldeias? Eram 200 ou 300? Os cidadãos do concelho de Mação têm o direito de saber se todas as decisões tomadas, em cada momento, foram as adequadas à situação em concreto. E se essas decisões tiveram, ou não, consequências, dada a desproporcionalidade da área ardida, de aldeias atingidas e casas ardidas, no concelho de Mação em relação aos outros concelhos.
Houve problemas na evacuação de pessoas?
Sim. As pessoas resistiram em sair. Felizmente conseguimos evitar a perda de vidas humanas. Mas, temos de tentar evitar que o fogo entre dentro das aldeias. Faz sentido que as câmaras assumam, em parceria com o governo, algum tipo de medidas.
Quais?
Criar grandes faixas de proteção às aldeias para que as pessoas se sintam mais seguras. Para não vivermos nesta azáfama de não poder combater o fogo e só estarmos preocupados em ir buscar as pessoas. Que haja alguma segurança, onde haja uma efetiva limpeza dentro da localidade. Porque sabemos que grande parte das pessoas já não vivem nas aldeias e há necessidade de outros se substituirem. Há ensinamentos que ficam deste incêndio e do de Pedrógão, onde aconteceram situações muito similares. Tentar perceber o que podemos fazer mais no futuro para preservar património e vidas humanas.
Já tinha avisado as autoridades para o risco de incêndio na zona?
Sempre dissémos que Mação era potencialmente um território com muito risco. Apesar de termos uma taxa de mais de 95% de sucesso na primeira intervenção, quando o fogo atinge determinadas proporções torna-se incontrolával, tal a matéria combustível que existe e tal o estado de abandono em que estão as aldeias. Isso sempre foi dito. O engenheiro Louro avisou que podiam arder aldeias de fio a pavio. Que fique claro que o que aconteceu em metade do concelho pode acontecer na outra metade. É a realidade nua e crua. Como pode acontecer na generalidade dos concelhos do interior de Portugal.
O que pode ser feito pelas autoridades para prevenir os incêndios? Alterar o calendário da fase Charlie?
Essa podia ser uma possibilidade. O que se tem vindo a comprovar é que a floresta está de tal maneira desordenada, com tanto combustível, as aldeias estão de tal maneira despovoadas que, de facto, quando os incêndios atingem determinadas proporções os meios são quase insuficientes. O problema está muito a montante. Não se deve resumir à questão do combate.
O seu vice-presidente disse que alguns ministros não tinham feito o trabalho de casa. Partilha desta opinião?
Totalmente. O meu vice-presidente disse o que tinha a dizer nesse dia. Sublinho e reforço. Em 2003 quando arderam 20 mil hectares encetou-se uma nova fase na forma como vemos a floresta. Nesse sentido, foi feito um trabalho gigantesco para tentar encontrar resposta para o problema da floresta, no concelho de Mação e no país. Reclamámos durante anos um projeto-piloto, com ideias e estrutura que foram validadas por todos os governos.
Acolheram as propostas?
Não me lembro de nenhum governo, desde 2004 por aí em diante e até este em concreto, ter dito que aquelas ideias não eram exequíveis ou que aquele não era o caminho. O engenheiro Louro, meu vice-presidente, foi várias vezes apresentar as ideias ao estrangeiro e foram validadas. O município de Mação recebeu uma extensão em Espanha relativamente às ideias que apresentamos relativamente à gestão florestal. Por todos foi reconhecido que este era o caminho. Infelizmente, não fizeram o trabalho e houve alguma falta de vontade política porque reclamámos diversas vezes que nos dessem uma oportunidade.
De quantos pedidos estamos a falar?
De várias vezes com todos os governos, desde 2005 para cá.
Incluindo governo PSD?
Claro. Com a ministra Assunção Cristas também houve conversas deste nível. Estamos perfeitamente à vontade para dizer que todos sabiam aquilo que gostaríamos. Infelizmente não foi possível cativarmos ninguém e alocarmos alguns meios para desenvolvermos um projeto-piloto circunscrito em cerca de mil hectares, onde pudéssemos demonstrar a viabilidade daquilo que defendíamos.
Como vê então as declarações de Capoulas Santos quando disse que não tinha conhecimento dos vossos pedidos?
Só se o ministro se estiver a referir a que não houve nenhuma carta desde que foi anunciado o projeto-piloto para Pedrógão. O que também não é verdade, porque lhe escrevi uma carta no dia 27 ou 29 de junho. Se fizer qualquer pesquisa nos arquivos de qualquer jornal, qualquer pesquisa no Google, perceberá que o concelho de Mação várias vezes fez solicitações.
Mas independemente disso fizeram o pedido para o ministério dele?
Houve conversas. Formalmente, um pedido para fazer parte do projeto-piloto nunca seguiu, a não ser no dia 27 ou 28 de junho, quando saíram as notícias relativamente ao projeto-piloto de Pedrógão. Na altura, nessa carta, disse que como era do conhecimento do ministro, já há muitos anos que Mação reclamava. Penso que o ministro seguramente sabia aquilo que andávamos a fazer. Que mais não fosse por ter estado em Mação no dia 21 de maio de 2016 a acompanhar o primeiro-ministro durante a visita ao nosso projeto. Não pode alegar desconhecimento. Mas, se o ministro estiver a falar do formalismo da questão em si, diria que tinha razão, que efetivamente só no dia 27 de junho é que algo lhe foi transmitido.
Mas falaram informalmente sobre o assunto?
Quando esteve em Mação no mês de março num seminário sobre a floresta, o assunto foi falado. E esteve comigo e com o vice-presidente em Lisboa, há relativamente pouco tempo, precisamente na apresentação desse seminário, onde voltámos a conversar sobre este assunto. Por isso, dizer que não nos podemos queixar por não ter sido concedida esta oportunidade, parece-me que não é manifestamente muito correto. Se fizer uma pesquisa numa qualquer base de dados sobre esta matéria, verificará as vezes que governantes estiveram neste salão nobre, neste edifício, onde lhes foi pedido que dessem uma oportunidade ao concelho de Mação. Parto do princípio que os arquivos do Ministério da Agricultura não são apagados de ministro para ministro.
O projeto-piloto era só reordenamento florestal ou incluía uma nova organização de meios no combate aos incêndios?
O que tínhamos pensado e que está escrito era ter uma área de mil ou dois mil hectares em experiência onde seriam plantadas diversas espécies, desde o eucalipto ao olival, às árvores de fruto, obviamento ao pinheiro. Tentar, se possível, que houvesse pastorícia e também ter pontos de água. Seria um ordenamento florestal que garantisse a viabilidade territorial e que garantisse que os incêndios não seriam aquilo que são hoje. Mais do que isso. Também tinha que ver com a humanização do território e com a viabilidade destes territórios para ajudar a fixação de pessoas. Estas eram as nossas propostas, que eram válidas em 2005/2006 e que são válidas em 2017/2018.
Nada foi feito?
Nada foi feito. Foi feita uma pequena zona de demonstração, muito tímida, daquilo que nós queríamos fazer, onde, aliás, o primeiro-ministro e mais cinco ministros estiveram presentes a 21 de março de 2016, no dia Internacional da Floresta. Por alguma razão vieram a Mação ver aquilo que defendíamos e aquilo que deveria ser um primeiro passo para viabilizar a floresta em Portugal.
Então porque não avançou o projeto-piloto?
Houve algumas vezes em que se esteve muito perto de ser possível de levar por diante o projeto-piloto, mas por razões, que poderão explicar outros as coisas não avançaram.
Mas porquê?
A justificação tinha que ver com falta de verbas, com fundos, com o ‘teremos de ver’, enfim. As coisas foram sendo adiadas e nunca se concretizaram. Várias vezes também, nomeadamente no governo anterior, foi dito ‘bom isso são fundos que estão disponíveis em várias medidas setoriais’. Ou seja, não há um pacote com a medida em concreto. Andamos a tentar resolver este problema há muitos anos.
O que avançou afinal?
Em setembro de 2003 foi feito um consenso político na assembleia municipal para tentarmos chegar a um novo paradigma na floresta no concelho de Mação. A partir daí avançou-se em várias direções, com o apoio do governo suíço, através de uma fundação. Avançou-se com uma série de medidas, muitas delas em vigor e que ajudaram. Temos em cada aldeia um kit com 600 litros de água e uma auto-bomba para momentos de aflições onde não há ninguém. Resolveu quatro ou cinco situações neste incêndio. Criámos uma proteção à volta das aldeias com três ou quatro kms de estradões florestais. Só não foi feito o que a câmara sozinha não podia fazer.
O quê?
Ordenar a floresta no nosso concelho onde há 80 mil prédios rústicos, 17 mil proprietários onde vivem sete mil pessoas. Menos de metade dos proprietários. É dantesco fazer alguma coisa sem criar sociedades, associações, organizações, que tenham poder sobre essa parte do território. É impossível em minifúndio desta maneira, ordenar seja aquilo que for.
Porque acha que o reordenamento florestal não tem sido uma prioridade para os governos? Por lobbies?
Não consigo chegar a uma conclusão. Ou só a uma conclusão. É um processo extraordinariamente difícil. É um dos desafios mais complexos que o país tem pela frente. O que está inerente a estas questões também tem que ver com uma organização do território e com o futuro de dois terços do país. Estamos a falar de sustentabilidade do território. Penso que há um conjunto de pessoas que já desistiram de achar que há futuro para grande parte do território de Portugal.
Governantes?
Sim. No geral. Acho que é uma desistência do território, por exemplo, quando qualquer estimativa do INE nos diz que, em 2040, 80% da poupulação vai viver no litoral e isto não causa nenhum sobressalto. No mês passado, estava longe de saber o que ia acontecer em Mação, escrevi uma carta ao Presidente da República a pedir-lhe que pudesse ter este assunto na sua secretária e presente na sua mente.
Fez esse pedido a Marcelo?
Fiz esse pedido numa carta em que lhe escrevi, no final de junho, onde lhe transmiti o que me ia na alma.
Depois do incêncio de Pedrógão?
Depois do incêndio de Pedrógão. Foi numa noite, quando percebi que vamos ter milhares de aldeias por este país fora desertas, quando não há um debate nacional sobre esta matéria. Parece-me que há uma questão de viabilidade do país e de coesão territorial gravíssima. Há algumas noções do que se quer fazer mas este é um trabalho de gerações. E na política vivemos muito num curto prazo. Há muitas dificuldades de implementar seja aquilo que for. Penso que se há pacto de regime que devia ser estabalecido era este. Devíamos debater o que devia ser feito com o interior de Portugal. Se a floresta fosse viável, se estivesse ordenada, acredito que este despovoamento territorial não era aquilo que é hoje.