O filme abre com o swing dos The Retrosettes. A câmara anda às voltas com os músicos no palco giratório, numa espécie de girar dos ponteiros do relógio. Está sempre no presente a andar para trás, a recordar. “A Juventude” é um filme nostálgico a fugir da nostalgia. Explico-me: o protagonista, um compositor e maestro retirado (Michael Caine), e o seu amigo realizador, que trabalha no seu último filme-testamento (Harvey Keitel), falam do passado com a ironia do presente. Eles não querem voltar atrás mas, tal como não podem evitar falar da próstata (e das quantas gotas que urinaram nesse dia), não conseguem deixar de falar do que se lembram e não se lembram.
Na paisagem idílica dos Alpes suíços, num spa de luxo, por entre massagens e banhos retemperadores, limpeza dos intestinos e animações noturnas que incluem bandas e músicos, cuspidores de fogo, manobradores de gigantes bolas de sabão – sempre tudo a horas muito certas –, anda um famoso ator a preparar-se para interpretar o papel de Hitler, uma Miss Universo inteligente para arrasar com o preconceito, um casal idoso que não troca palavras ao jantar e fornica nos bosques e um Diego Maradona obeso (cujo nome nunca é pronunciado), afetado por problemas respiratórios mas que ainda mantém a magia no seu pé esquerdo.
Os dois amigos de longa data (o filho do realizador casou com a filha do compositor mas, a meio do filme, ele deixa–a porque se apaixonou por uma cantora pop que “é boa na cama”) vão dando os seus passeios pelas estradas ao redor da estância termal, conversando sobre aquilo de que se lembram e sobre aquilo de que não se lembram.
Por exemplo, Gilda Black, alguém por quem ambos estiveram enamorados e com quem nenhum deles acabou por dormir por causa da amizade. Ou será que foi mesmo assim? Mick Boyle, o realizador, acaba por confessar que o mais triste é que não se lembra se realmente dormiu com Gilda Black.
O amor, a amizade, o preconceito, a memória e a passagem do tempo, a visão da juventude: Boyle está a trabalhar no seu filme-testamento feito a pensar na diva Brenda Morel (Jane Fonda) com um grupo de jovens argumentistas que passam o tempo todo a improvisar finais, porque é o único problema que ainda não conseguiram resolver.
Num ambiente idílico de pastos verdes e montanhas pintalgadas de neve, aquele hotel termal parece sequestrado pelos proprietários à passagem do tempo, como se existisse para lá do passado e do presente, suspenso num limbo de saúde e bem-estar, desencastrado da realidade para lá das serras. O seu real é irreal e na irrealidade de tudo está o seu realismo. A vida é, ali, outra rotina.
Nessa rotina, o maestro retirado pode conduzir uma peça musical da natureza com chocalhos e mugidos de vaca, o vento e a passarada; ao realizador podem aparecer-lhe os fantasmas de todas as atrizes que dirigiu, ainda envergando os figurinos; um monge pode levitar e um montanhista pode seduzir a filha do compositor com as piores frases de engate de que há memória; e o ator pode surgir completamente embrenhado no seu papel de Adolf Hitler para estranheza e horror de todos.
Visualmente cuidado como um relógio desde o início (essa passagem coreografada dos pacientes em direção aos banhos começa logo por encher as medidas), o filme de Sorrentino é talvez o mais nostálgico desta série de obras cinematográficas mais ou menos soalheiras de que temos vindo a escrever este verão. É um filme emocionante sobre a amizade (Mick Boyle diz que as emoções são tudo o que temos) e a vida. E como escreveu um dia Novalis, que a dada altura é citado no filme, só mesmo um artista para entender o sentido da vida.