Poucos são capazes de filmar a saída de um túnel como Akira Kurosawa. Aquele soldado que caminha no escuro das suas próprias memórias de guerra para uma luz ténue de fim do dia (depois de ameaçado por um cão feroz), com um candeeiro público de fraca luz vermelha a entrar suavemente do lado esquerdo, é um dos momentos plasticamente mais conseguidos de uma obra em que estes momentos de puro prazer cromático se multiplicam (graças também à fotografia de Takao Saito e Shoji Ueda).
A história é a de um militar atormentado pelos homens que viu morrer, soldados de cara azulada que saem do túnel para saudar o seu comandante. Estão vivos no seu sonho e é ele que tem de lhes dizer que morreram por culpa dele, que os enviou para a morte. A dor do sobrevivente que carrega a mágoa de sobreviver, as marcas que a ii Guerra Mundial deixou na sociedade japonesa estão bem presentes neste sonho. No segmento, como em outros, Kurosawa teve ajuda de Ishiro Honda, o veterano criador de Godzilla.
Esta obra extremamente pessoal, feita com a ajuda dos amigos realizadores americanos – inclui mesmo Martin Scorsese como ator, interpretando o papel de Vincent van Gogh no sonho em que um pintor japonês irrompe pelas telas do criador flamengo como se fossem estas paisagens reais –, é uma coleção de contos oníricos saídos do terreno fértil dos sonhos do próprio Kurosawa. O realizador sempre garantiu que os sonhos eram mesmo os seus, sem tirar nem pôr.
Ao todo são oito curtas-metragens que misturam mitos, lendas, contos populares, conjugados com experiências pessoais, impressões e medos comuns à sociedade japonesa – como no “Monte Fuji a Vermelho”, em que a uma erupção vulcânica se aliam as explosões em cadeia de uma central nuclear para trazer a catástrofe à humanidade. A ameaça mortal é vermelha e espalha-se pelo ar.
Das teatralizações mais clássicas dos primeiros contos, em que as cores irrompem de uma natureza intensa (esse vale idílico de montanhas ao fundo do primeiro sonho, de um verde forte e florido e um arco-íris bem definido), até à paleta mais contida de posteriores apocalipses (passando por essa tempestade de neve que quase mata, onde os homens mal falam, mal se vislumbram e se arrastam subjugados pelo mau tempo e o som intenso da sua respiração), “Sonhos de Akira Kurosawa” acaba por se equilibrar entre pesadelos e esperanças (o yin e yang de que fala o xintoísmo). O realizador japonês contava então 80 anos e morreria em 1998, aos 88.
Nele também há espaço para a crítica social a uma sociedade arrastada para o consumismo que está a perder a sua tão imprescindível ligação à natureza (como o corte dos pessegueiros que leva ao protesto dos bonecos no segundo trecho), não percebendo que ar puro e água potável são dois elementos imprescindíveis para a sua sobrevivência. E aí o filme volta a deixar a natureza explodir de verdes e flores, de amarelos, lilases, laranjas, vermelhos, de brancos intensos. A religião xintoísta, maioritária no Japão, venera a natureza e a conjugação harmoniosa entre o ser humano e o espaço que o rodeia. Tal como este filme.
No último dos contos, na aldeia dos moinhos de água, o realizador filma a placidez da natureza, as águas do rio que fazem mover tranquilamente as plantas aquáticas, o ritmo monótono dos moinhos ao sabor das correntes, com a banda sonora melancólica de uma peça composta pelo compositor russo Mikhail Ippolitov-Ivanov (Suite n.o 1 dos Sketches Caucasianos), logo a seguir a mostrar um funeral vibrante em que se festeja a vida bem vivida ao invés de chorar (a inevitabilidade da) morte.