A costela de Adão. Emancipação da mulher em jeito de comédia

Spencer Tracy e Katharine Hepburn divertem-se numa luta de sexos em que a guerra das palavras se transforma num divertido jogo de quem cala perde

Spencer Tracy e Katharine Hepburn tinham uma química cinematográfica que dava para uma combustão espontânea. Este foi o sexto de uma série de nove filmes que começou em 1942, no cenário de “A Primeira Dama”, onde se conheceram e iniciaram uma relação de 25 anos que durou até à morte do ator, em 1967. Uma relação contrária aos cânones – ou muito adequada, tendo em conta a moral da época – já que Tracy, devido ao seu catolicismo, nunca se divorciou da primeira mulher.

Em “A Costela de Adão” são mesmo um casal – se não podiam sê-lo formalmente na vida real, eram-no no cinema –, um casal de advogados bem-sucedidos. Ele, um dos melhores promotores públicos; ela, com escritório em nome próprio. Um casal de enamorados que se tratam por Pinky (rosado) e Pinkie (dedo mindinho) – e que dá mesmo azo a um aparte hilariante em tribunal, quando ele se descai e a trata por Pinkie e o escrivão lhe pede que repita e lhe pergunta se termina em y ou ie –, que se filmam a entregar o último cheque para pagar a hipoteca da casa de campo e que não conseguem imaginar a vida um sem o outro.

Cukor e o argumento – escrito à medida da dupla Tracy-Hepburn pelos seus amigos Ruth Gordon e Garson Kanin, conseguiu uma nomeação para o Óscar, mas perdeu para “Crepúsculo dos Deuses” – exploram muito bem esse lado e as cenas do lápis deitado ao chão de propósito para poderem trocar olhares ou trejeitos debaixo da mesa são momentos felizes de uma comédia povoada deles.

Nota-se que o filme foi pensado para os dois, para a sua capacidade como atores de comédia e para esse je ne sais quoi que se criava quando os dois se juntavam em cena. E logo desde o primeiro momento, com esse pequeno-almoço na cama onde ela o acorda já vestida, com café para ele tomar e jornais.

O pequeno-almoço também serve para sublinhar que, apesar de este ser um filme sobre o direito das mulheres a serem julgadas aos olhos da lei, dos juízes e dos jurados da mesma forma que os homens – neste caso, o direito de uma mulher que tenta matar o marido ao apanhá-lo em flagrante adultério às mesmas atenuantes que um marido colocado na mesma situação –, ainda estamos nos anos 40 do século passado. Por mais progressista que fosse o argumento – e o casamento burguês –, ainda se partia de papéis definidos para marido e mulher dentro da instituição matrimonial. “Eu sou antiquado – diz Adam Bonner (Tracy) –, gosto de dois sexos.”

Mesmo avançado para a sua época, mesmo em tom de comédia de costumes, os estúdios da MGM cuidaram de que o filme fosse bem-comportado, apartando qualquer possibilidade de polémica capaz de perturbar a sua carreira nos cinemas – que, diga-se de passagem, teve grande sucesso. Até chegaram a censurar o primeiro título, “Man and Wife”, pelo seu possível ataque à instituição do casamento. A costela de Adão servia muito mais para colocar as relações entre homens e mulheres no devido patamar naquela altura.

O filme é pura comédia da palavra, com diálogos que por vezes aceleram até à incompreensão, quando se tornam apenas um ruído que luta contra outro ruído pela primazia de algo que deixou de ser uma discussão argumentativa e passou a ser uma luta onde quem se cala perde. Não deixa de ser um reflexo de muitas discussões conjugais em que o conteúdo deixa de ser importante para ganhar a batalha. E é curioso que, nessa altura, Cukor deixa a câmara quieta, abre o plano e entrega a imagem ao teatro das palavras. A câmara passa a ser um espetador da relação conjugal, dos desequilíbrios da luta argumentativa e dos reequilíbrios que advêm a seguir.