D. Quixote, Sancho Pança, romances de cavalaria, o Lazarillo de Tormes, o picaresco, de tudo isso se muniu Ariano Suassuna para com grande talento e humor verter para o universo sertanejo brasileiro essa tradição literária europeia que, aliada, ao espírito mágico dos folhetos e do romanceiro popular nordestino, resultou num dos mais belos exemplos da dramaturgia brasileira: “O Auto da Compadecida”.
O realizador pernambucano Guel Arraes agarrou na peça de teatro popular de Suassuna e, primeiro, deu-lhe um formato televisivo de três episódios (1999) e só depois uma versão mais curta para o grande ecrã – que não sendo desmerecedora da peça de teatro, não substitui o fruir da obra dramatúrgica na sua total dimensão, como no formato de minissérie se consegue, tendo em conta a ausência da sua encenação em palcos.
O escritor paraíbano terminou a peça em 1955, elemento central (em conjunto com o livro “Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do vai-e-volta”) e percursor daquilo a que viria a chamar de movimento armorial, cujo manifesto apresentou a 18 de outubro de 1970 na igreja de São Pedro, em Pernambuco. Um movimento que pretendia criar arte erudita com base na cultura popular do Nordeste. Fosse ela na literatura, no teatro, na música, nas artes plásticas, na dança, no teatro, no cinema, na arquitetura.
“O Auto da Compadecida” narra as aventuras de João Grilo, engenhoso da mentira, e de seu amigo Chicó, o mais cobarde de todos os homens. Os dois formam uma parelha de criadores ardilosos de engenho e humor, capazes de enganar os ricos e poderosos e extrair da aridez das paisagens pobres e agrestes do Nordeste do Brasil o riso que não está à superfície. É a crítica a um poder podre feito de exploração da miséria, através do enobrecimento do estratagema da sobrevivência, da inteligência ardilosa, do humor disfarçado de bajulação. A arte de sobreviver todos os dias como chapada de luva branca nos poderosos.
O que faz Suassuna (e Arraes consegue adaptar bem à televisão e ao cinema, com ajuda dos argumentistas Adriana Falcão e João Falcão) é transpor o picaresco do Século de Ouro espanhol para o Brasil do século XX, onde os senhores feudais ainda reinam na exploração dos oprimidos. E a crítica às instituições degradadas da Espanha imperial transformam-se à crítica ao poder instituído no sertão desde os tempos do Brasil imperial e que a República não soube ou não quis contrariar.
A vida do pobre que Ariano Suassuna transforma em epopeia – e nesta adaptação ganha vida com um elenco extraordinário, à frente do qual estão os intérpretes da dupla João Grilo (Mateus Nachtergaele) e Chicó (Selton Mello) – é também uma mensagem (com humor) de amor pelo sertão.
O texto é brilhante no seu jogo de palavras, na sua busca de harmonizar o discurso popular do sertão com a tradição do cordel, conjugando o teatro à europeia com as histórias contadas pelos cordelistas na sua eterna peregrinação pelo sertão para declamar e vender os seus livros de cordel. Conseguindo criar, ao mesmo tempo, um microcosmos representativo dos principais grupos sociais do sertão.
Mesmo denunciando em certos momentos a sua criação original para televisão, não fugindo a uma linguagem narrativa que denota a influência das produções telenovelescas, “O Auto da Compadecida” resulta em momentos brilhantes de criação e dá a possibilidade a novas gerações de tomar contato com um dos mais notáveis textos da dramaturgia em língua portuguesa.