O grupo colombiano Bulldozer fez às 11 horas da manhã um ateliê, com crianças acompanhadas pelos país, sobre como dançar música da Colômbia. A jornada vai ser longa: pelas cinco da manhã vão atuar no palco da praia Vasco da Gama, naquele que será uma espécie de encerramento em grande dos concertos. O líder do grupo, Fabián Morales, começa por explicar como é que um grupo de Bogotá toca soukous de África e champeta de Cartagena, que já é uma mistura de música do Caribe com sonoridades africanas, e lhes junta uma tonalidade rock forte e dançável. “Como muitos jovens da minha idade, eu cresci a escutar Kurt Cobain e os Nirvana. Mas um dia foi-me parar às mãos um disco de soukous.
Foi uma revelação. Mudou a minha vida. Nesse dia peguei na guitarra e tentei tocar como um africano, mas não conseguia. Tinha os dedos preguiçosos. Então resolvi que não podia desistir e passei a tocar esta música da forma que conseguia tocar.” Assim começaram os Bulldozer, uma das bandas que encerraram o FMM no palco da praia, às quatro da manhã. A jovem banda de Bogotá é um exemplo de como a música se mistura em cada povo com condimentos de muitos outros e de como as identidades se constroem com os outros e bebendo em muitas culturas. Constituídos por Sandro Londoño nas percussões, Adela Espitia na voz e Fábian na guitarra, lançaram o disco de soukous hardcore “Cannibal Dancer”.
Nesta manhã, à hora do pequeno-almoço, dezenas de crianças e pais, sob a batuta de Adela, aprendem a dançar. Ela começa por explicar os dois ritmos de base pelas palmas, enquanto os outros tocam. É preciso “acalentar” (aquecer), diz. Segue–se a cabeça, os ombros, a cintura e as pernas. O grau de dificuldade vai subindo, mas toda a gente se lança a dançar. Sempre no “um” e “dois”, os ritmos básicos da champeta. Adela vai meneando as ancas, movendo as pernas e, de repente, a plateia toda, fria como só os europeus sabem ser, já está quente o suficiente para não parar de dançar. Até uma criança de gatas resolve participar.
Para o ano há mais e assinalam-se os 20 anos do Festival das Músicas do Mundo.
São um grupo de Bogotá, como acabam por procurar música africana?
Fabián Morales – Quando tinha 17 anos comecei a tocar guitarra. E quando o fiz, não havia para mim nada mais do que o rock’n’roll, e este esgotava-se nos Nirvana. Passado um tempo, um amigo passou–me uma cassete de um cantor de soukous do Congo, muito conhecido, que é o Kanda Bongo Man, e mudou-me a vida.
Foi uma espécie de conversão religiosa, como o caminho de Damasco de São Paulo?
Sandro Londoño – Conheceu o amor. (risos)
FB – Foi isso. Enamorei-me das guitarras africanas. Fui a Cartagena, na costa, e aí há um tipo de música chamado champeta, que é uma espécie de reinterpretação do soukous no contexto e nas realidades colombianas. Aí, com guitarristas de lá, e depois com o boom da internet, tentei começar a tocar como os guitarristas africanos, mas não conseguia. E tomei a decisão de que ia tocar a música africana tendo em conta o que era e pensava.
A música que se toca na Colômbia, como a cumbia, tem muita influência africana e resulta de uma mescla de gentes e culturas. Não tinha atração pela cumbia?
FM – O meu pai viajava muito pelo interior e trazia-me muitas cassetes de cumbia, que é uma das músicas mais difundidas na Colômbia. E apanhava muitos tipos de músicas populares. Há um boom da cumbia, é mundial, gosto, mas não é a minha música.
Adela Espitia – Há um boom da cumbia por toda a América Latina e todos nós já tocámos cumbia. Nós não decidimos não fazer cumbia por uma oposição a esse género. A nossa escolha musical resultou da soma das buscas de cada um de nós. Encontrámo-nos, sem forçar aquilo que é o gosto de todos, naquilo que hoje é o Bulldozer. Não fazemos cumbia não porque não nos agrade escutar esse tipo de música, mas porque escolhemos um outro percurso na música africana.
Mas o processo da champeta, música que também resulta de uma influência africana, não é similar ao da cumbia?
AE – As raízes da champeta ou de grande parte do folclore colombiano, como a cumbia e muitos outros ritmos tradicionais, são muito devedoras da herança cultural africana. Há uma tendência dos músicos do interior do país, diferente dos da costa, de fazer uma maior mescla com as músicas tradicionais.
Em Bogotá, o movimento punk é também tradicionalmente muito forte, até pelas características da cidade. Vocês aproveitaram alguma coisa desta realidade? Até porque tocaram soukous hardcore… (risos)
FM – Eu aprendi a tocar guitarra imitando o grounge, que é um parente do punk. Também não posso negar que houve grupos de punk que influenciaram gerações inteiras de jovens na Colômbia, como La Pestilencia. De certa forma, Bogotá, com a sua agressividade, dá força a este tipo de músicas. Do punk retirámos muito o do it yourself. Os nossos discos, fazemos nós, não estamos à espera que chegue alguém e nos diga quanto dinheiro temos para produzir.
SL – Para dizer a verdade, estamos à espera. (risos) Mas não é totalmente necessário.
Como é a expressão da realidade social e política da Colômbia atual na vossa música? O fim da guerra e o processo de paz têm alguma influência?
FM – Mais do que a expressão desta situação na nossa música, aquilo que é importante é a posição que temos, tanto como grupo como como pessoas, perante este processo de paz. No meio deste conflito entre grupos de esquerda e de direita, nós esperamos que finalmente seja possível fazer coisas para todos os colombianos. É preciso ajudar a mudar as coisas a partir da nossa ação pessoal.
AE – Estamos fartos de palavras, é preciso mudar as coisas. Nós crescemos na cidade, e não no campo, onde a guerra estava mais presente, e achamos que há muito para mudar, até em sítios onde não houve esta presença da guerra. Há muita violência na sociedade. A política na Colômbia é muito complexa. Não é a pobreza que nos dá consciência. As coisas não se dividem entre bons e maus. Há muitas atitudes, por exemplo , das esquerdas que não nos resolvem os problemas da vida do dia-a-dia. A violência não nos tocou diretamente, não tivemos familiares sequestrados, nem isso. Mas a nossa atitude perante tudo isto tem muito que ver com a nossa música, não ficamos à espera que nos resolvam as coisas. Queremos ter um papel ativo na nossa vida.
Aqui em Portugal há uma grande rutura e barreira entre a música que é escutada nas festas populares e a música que as classes instruídas escutam. Na Colômbia, essa barreira elitista é menor?
FM – Na Colômbia, isso também se passa, talvez não seja tão marcado. Em Cartagena, a champeta é a música do povo mais povo. Até no seu nome: champeta quer dizer navalha. Tem esse nome porque eram os pescadores, que tinham facas para cortar o peixe, que a escutavam nas festas. E quando havia conflitos nessas festas tiravam para fora as suas champetas (navalhas). Por isso, a música ganhou esse nome. Dizer “tu és um champetudo” é um insulto. Eu tenho família em Cartagena, de classe média; as suas festas começavam com salsa e outros tipos de música, mas quando já estavam aquecidos e tinham bebido um bocado, ouviam champeta.
AE – As barreiras já foram mais extremadas, com a champeta a ser sobretudo música popular. Agora, com o tempo, chegou às cidades e a mais regiões e atingiu muito mais gente. O que se passa é que a champeta subiu de status, não sei porquê. Agora vais a uma festa de elite em Cartagena e vais ouvir champeta. Não sei se é bom ou mau.
Havia também um fenómeno de música de narcos, os chamados narcocorridos. É um fenómeno musical ou apenas policial?
SL – É complicado dizer, mas a experiência que tenho com algumas pessoas que fazem estas músicas é que são pagas e patrocinadas por narcotraficantes. É uma espécie de música de encomenda, como se fosse um anúncio pago. É usado nesse microcosmos como algo de prestígio. Mas há músicas que saem desse circuito e podem tornar-se populares. Até por causa da imagem desses músicos, mudou: antigamente era mais mexicana, com sombreiro e botas de montar; agora é mais pop, o que faz ampliar o público.
É uma espécie de gangstanarco em ritmo latino.
SL – Exato. O fenómeno cresceu. Muita gente escuta isso, tem uma espécie de identificação. Em muitas camadas da população, esta imagem que tem a Colômbia, de cartéis e violência, surge para alguns como uma imagem forte, dominadora, de gente valente. Por isso há pessoas que ainda se identificam com essa imagem negativa.
É uma imagem artificial, a importância do narcotráfico no país, ou é real?
SL – Tem importância porque afetou muitas vidas com violência e bombas. Felizmente, a mim não me afetou. Há muitas coisas que se passam e que influenciam as gerações mais jovens. Há um pensamento consumista, que vem dos EUA, que tem muita influência. E que para mim é prejudicial e danifica o pensamento, dadas as suas limitações e apelos apenas consumistas.