O grande exemplo de Longfellow Deeds

O confronto entre a honradez do campo e o cinismo da cidade, num filme onde Gary Cooper brilha e que valeu o Óscar de realização a Frank Capra

A produção foi adiada seis meses porque Frank Capra só queria Gary Cooper para interpretar o papel de Longfelow Deeds, o homem que vem de uma pequena cidade do Vermont (a inventada Mandrake Falls) para herdar a fortuna de 20 milhões de dólares que o seu tio rico lhe deixou. E percebe-se porquê, o ator consegue transmitir um lado de pureza quase infantil ao personagem, sabido, mas ingénuo, tão capaz de ensinar uma lição com os punhos, como com as palavras. Um tocador de tuba, escritor de poemas por encomenda para postais, mas ao mesmo tempo com olho para o negócio e sempre de pé atrás em matéria de dinheiro – nunca assinando sem ler. Um homem capaz de se apaixonar pela“lady in distress” e de sofrer nos olhos, no rosto e no silêncio quando descobre que essa mulher o traiu, lobo na pele de cordeiro.

O choque entre o provinciano sincero, honrado e de bom coração com a cínica metrópole, onde as pessoas se esqueceram do que é realmente ser humano, transformaram o nome da personagem de Cooper em adjetivo para definir uma situação em que alguém de espírito simples enfrenta o preconceito dos mais sofisticados.

Num país a sentir na pele os efeitos da Grande Depressão, que deixou muitos dos agricultores dos Estados Unidos na miséria, perdidas as quintas para os bancos, por não poderem pagar as hipotecas, e sem trabalho para alimentar a família, o exemplo de Deeds, indiferente à fortuna que lhe cai no regaço e julgado louco por querer ajudar os mais pobres, era uma comédia destinada ao sucesso.

A Columbia tinha tanta fé no filme que o vendeu aos exibidores individualmente e não, como era hábito na altura, como parte de um pacote. Mesmo assim, não abriram muito os cordões à bolsa para o produzir e Capra teve de se valer de um estratagema para conseguir filmar mais de que uma toma das cenas. Em vez de gritar corta, dizia para voltar ao princípio e os atores reinterpretavam a mesma cena.

Ao contrário do que era seu apanágio, Capra acabou por deixar derrapar o orçamento (superando os 800 mil de dólares), com mais takes, testes de novos ângulos e perspetivas diferentes para a câmara, ultrapassando até em cinco dias o plano de filmagens. Tudo acabou por compensar porque se tornou no maior êxito de Capra.

O título original do filme (“Mr. Deeds Goes to Town”) não foi o usado durante a produção (“Opera Hat”) e nem sequer foi uma escolha da equipa, mas o resultado de um concurso levado a cabo pelos estúdios. Curiosamente, Capra haveria de dar um título semelhante a outro filme seu em 1939, que em Portugal estreou como “Peço a Palavra” – “Mr. Smith Goes To Town” –, outra história de um homem ingénuo em choque com os preconceitos da grande cidade, neste caso nos corredores da política em Washington. Aí também com Jean Arthur no papel feminino, mas com James Stewart no lugar do protagonista.

Se em “Peço a Palavra”, Capra reserva para o congresso o grande tour de force de interpretação, em “Doido com Juízo”, a sequência é a do tribunal, um tribunal diferente porque aqui o que se trata é de aferir se Longfellow tem sanidade mental para gerir a fortuna que lhe calhou em sorte ou, se realmente, como tentam justificar os cínicos através da lei, ele perdeu o juízo, ao esbanjar dinheiro comprando terras para os agricultores.

Claro que há na comédia de Capra um moralismo estereotipado onde de um lado e outro os personagens correspondem a traço grosso a peões do argumento. O mundo dos ricos e dos pobres, o confronto entre o vício urbano e a virtude rural, entre a simplicidade honrada e a sofisticação perdida. Mas é tudo tão bem feito que ninguém quer saber.