Penso que, talvez, o seu autor me esteja a dizer para me servir de tudo o que tenho ao dispor, sem desperdiçar as oportunidades que a vida coloca no meu caminho. O autor está a pôr-me à vontade, como se estivesse, como convidada, na sua sala de jantar, colocando à minha disposição uma vasta panóplia de iguarias, a que poderei aceder se aceitar o seu convite.
Mas, para podermos aceitar tal convite, precisamos, por vezes, de nos libertar da «carga» excessiva que transportamos sobre os ombros, e de nos esvaziarmos «do excesso de ruído». Como escreveu a jornalista Inês Cardoso, recentemente, numa crónica: «Levamos meia vida a acumular tralha. E outra meia a desenvencilharmo-nos da tralha que acumulamos dentro de nós. Guardando apenas o que merece ser guardado, para que só aquilo que vale a pena nos preencha.»
Só assim poderemos sentir a informalidade necessária para escolhermos todos os frutos que quisermos, beneficiando das suas enormes vantagens. Servirmo-nos daquilo que a vida nos dá, é tratá-la por tu e, com informalidade, aceitarmos o que nos interessa e também rejeitarmos o que, para nós, não tem interesse. Como no banquete fictício, também na realidade não irei aceitar tudo e servir-me de tudo. Tenho, antes, de fazer uma seleção e eleger o que penso ser mais agradável, o que me fará menos mal, o que me trará maior benefício.
Derek Walcott tem, a propósito, um poema que ilustra, magistralmente, o que, também eu, pretendo transmitir. Traduzo e cito na íntegra: «Vai chegar o tempo / em que, orgulhoso, / irá saudar-se a si mesmo ao chegar / à porta de casa, vendo-se no seu próprio espelho, / e trocarão sorrisos de boas-vindas // e irá dizer: Sente-se aqui. Coma. / Vai amar de novo o estranho que afinal era. / Ofereça vinho. Ofereça pão. Devolva o seu coração / a ele, ao estranho que o amou // durante toda a sua vida, e a quem ignorou / trocando-o por outros, que o conhece de cor. / Vá à estante buscar as cartas de amor, // as fotografias, as anotações desesperadas / arranque o seu reflexo do espelho. / Sente-se. Sirva-se da vida.»
«Sirva-se» é, pois, algo que não deveria ser necessário dizer quanto à vida. Cada um de nós deveria, por si só, sentir o impulso de fazê-lo, sem necessidade de que outros no-lo dissessem. Mas é, também, significativo que alguém se preocupe com os outros e lhes diga, delicadamente, o que podem fazer; que lhes recorde, educadamente, que têm o direito, ou, antes, o dever de se «servir» da vida. Porque a vida, mais do que um direito, é uma obrigação – uma obrigação perante nós próprios e perante os outros, perante o mundo que nos rodeia, perante aqueles que tudo fizeram para que tivéssemos a oportunidade de, em liberdade, escolher o nosso caminho, moldando-o conforme a nossa vontade, o nosso desejo, os nossos sonhos.
E, se formos capazes de o fazer, estaremos, de facto, de parabéns.
Maria Eugénia Leitão
Escrito em parceria com o blogue da Letrário, Translation Services