A longa tradição do humor judeu remonta aos tempos da Tora e foi cultivada durante os períodos históricos mais duros para o povo judeu como forma de escape, de crítica encapotada ao outro ou mesmo de autocrítica. Durante o império romano servia para satirizar o cristianismo e de-senvolveu-se muito na Europa com os asquenazes. No filme de Radu Mihaileanu chega a dizer-se que a língua iídiche – falada pelos judeus da Europa (o hebraico era apenas a língua da religião) – tinha sido criada como sátira do alemão.
É com base nessa tradição que Mihaileanu realiza esta tragicomédia sobre o Holocausto, um filme, bem recebido pelo público e menos pela crítica, em que o humor explode com os convénios para falar do extermínio dos judeus e dos ciganos às mãos dos nazis.
Nascido na Roménia, filho de um jornalista judeu, Mordechaï Buchman (Mordechaï é o nome do judeu que assume o papel do oficial nazi), Mihaileanu emigrou aos 22 anos para Israel e a seguir para França, onde estudou cinema e tem feito carreira – primeiro como técnico e, a partir de “O Comboio da Vida”, já só como realizador. A sua primeira longa- -metragem, de 1993, “Trahir”, a história de um homem que passa informações à polícia política de Nicolae Ceausescu para sobreviver, passou pelos festivais de Estocolmo e de Montreal, mas só teve estreia comercial em França e na Holanda.
“O Comboio da Vida” é a história de uma farsa destinada à sobrevivência. Uma aldeia de judeus em França decide fugir do avanço das tropas nazis comprando um comboio, para fingir que se trata de uma deportação em massa para os campos de concentração. Há judeus que se disfarçam a muito custo de oficiais e soldados alemães e toda a aldeia embarca no comboio a caminho da liberdade. A viagem é atribulada, pelos percalços no caminho, pelo ódio que os judeus disfarçados de nazis começam a inspirar nos outros só por cumprirem o seu papel na fuga, pelo trabalho político de um judeu comunista que começa a arregimentar outros para a luta que pode até pôr em causa o sucesso da fuga, além de que a resistência francesa, desconhecedora da farsa, pretende dinamitar o comboio. Mas é também um grande grito de liberdade que melhor irrompe nessa antológica jam session no campo, à volta da fogueira, entre músicos klezmer e músicos ciganos.
Uma loucura que o filme se permite porque já estilhaçou os constrangimentos do género na cinematografia do Holocausto – daí que faz cruzar o comboio judeu com uma coluna de camiões de ciganos que, disfarçados, fingem ser uma coluna para deportação – lembrança de que o Porraimos (como em romani se chama ao genocídio cigano às mãos dos nazis, que significa “devoração”) acabou com 220 mil ciganos (ou mais), o que numa população de um milhão é uma percentagem substancial.
Toda a gargalhada que o filme provoca não deixa de causar uma certa secura na garganta do espetador, que dá por si a perguntar: “Será são o meu riso?” “Posso eu rir de uma das maiores tragédias da história da humanidade?” E as perguntas surgem mesmo quando sabemos que por trás da câmara está um judeu romeno, conhecedor do sofrimento de judeus e ciganos às mãos dos nazis.
A exultação da vida, da capacidade de sobrevivência, do humor como um bem precioso acaba por sofrer um revés com o final escolhido. E sem querer falar desse final, para evitar qualquer pé atrás em relação ao fruir de “O Comboio da Vida” (que vale a pena), digamos que é uma cedência às convenções que Mihaileanu se propusera não seguir. Talvez pelo rigor histórico, talvez por mea culpa, talvez porque só como fábula louca poderia ser imaginado.