Durante algum tempo da minha adolescência, “Gilda” foi um companheiro sempre presente, quer fosse na sua totalidade, quer fosse apenas uma sequência, uma das canções, um diálogo com Uncle Pio, julgador de carateres a partir do seu posto de vigia privilegiado da casa de banho do casino. O filme empolgava-me, atraía–me, seduzia-me também a mim com o seu canto de sereia cinematográfico.
A maneira como Charles Vidor filma Rita Hayworth, fazendo com que os cabelos brilhem como um sol, empresta-lhes uma cor que na realidade não está lá, tendo em conta que o filme é a preto e branco. Aliás, “Gilda” é um exemplo clássico de film noir, com uma mulher atraente que seduz os homens e os leva à desgraça – Uncle Pio classifica-a como uma harpia – e um anti-herói típico, de moral frágil e que circula nas zonas cinzentas da existência humana, mas com qualidades que o impedem de se transformar em vilão.
Aqui, esse anti-herói é Johnny Farrell, jogador inveterado de segunda (ganha dinheiro com dados viciados) que aparece numa Buenos Aires de estúdio (estas produções eram normalmente de baixo orçamento e os exteriores filmavam-se em Los Angeles) para ser salvo pelo dono de um casino (George Macready), que o usa como fachada para vender volfrâmio aos alemães – a ii Guerra Mundial no horizonte.
Claro que Gilda é casada com esse magnata e claro que Gilda e Johnny se enamoram – na verdade, há neles um fundo de bondade que as agruras da existência esconderam. Os dois são sobreviventes e os sobreviventes reconhecem-se e, muitas vezes, apaixonam-se, e, muitas vezes, de tal forma que se consomem.
Está tudo nessa cena do quarto em que o marido entra com Johnny e pergunta a Gilda, distraída a vestir-se e a cantarolar, se está decente. Ela ergue-se com um movimento de cabelos capaz de derreter o mais teimoso icebergue, na cara um sorriso rasgado que se vai apagando nesse segundo de hesitação ao ver Johnny, tapa apenas um dos ombros com o vestido e responde uma das mais mentirosas frases de toda a história do cinema: “Claro que estou decente.”
A cena está feita para marcar, o amor entre os dois não pode acontecer, mas está claro como água que estão destinados a atrair-se como os dois lados de um velcro. Um velcro feito de pregos, de espinhos: um amor tão grande que a vingança pode ser outra forma de o expressar. Johnny haverá de a aperfeiçoar como obra de arte, a tal ponto que a transforma numa autoflagelação. O herói do filme negro é assim mesmo, um masoquista; para ele, o amor, o sacrifício, a morte caminham de mãos dadas. A escolha de Buenos Aires, cidade do tango, onde o homem acaba sempre perdido por uma mulher que o abandona.
O filme não poupou esforços para transformar Rita Hayworth na quintessência do sex appeal. Parafraseando uma obra mais contemporânea, “Um Coração Selvagem”, de David Lynch, Gilda é aqui “mais quente que o asfalto da Geórgia”. A imprensa da altura já lhe tinha cunhado o epíteto de “deusa do amor” e durante a ii Guerra Mundial foi a mais requisitada de todas as atrizes e modelos para animar as tropas.
Tal como nós, espetadores, Uncle Pio, a partir do seu local privilegiado, sabe que o amor dos dois é genuíno, porque ambos se magoam genuinamente e isso enche-o de ternura por ela – a quem oferece ambrósia e os tabacos mais finos – e por ele – o cavalheiro que ele sempre reconheceu. É a Uncle Pio que o filme dá espaço no final, porque a sabedoria da existência humana anda muitas vezes longe dos grandes salões, dos brilhos e dos holofotes. Porque “Gilda” é uma grande homenagem aos feridos de alma e às suas segundas oportunidades.