Curso, uniforme e seguros. Trabalhadores pagam, Ryanair diz que oferece

Todos os trabalhadores ouvidos pelo i multiplicam histórias sobre pagamentos de cursos e uniformes e falam da pressão que sentem para vender a bordo. Ryanair garante que tudo isso é pago e descarta a palavra “pressão” sobre a equipa

Angelo assinou contrato com a Crewlink – empresa de recrutamento da Ryanair – em 2012 e foi destacado para a base italiana de Ciampino, em Roma. No dia 27 de janeiro de 2015 sentiu-se mal em pleno voo e, por lhe ter sido detetada uma bolha de ar num pulmão, foi operado de urgência, ficou internado oito dias e, por aconselhamento médico, não pôde voar nos três meses seguintes, período durante o qual se viu obrigado a permanecer em Roma.

Contactou a Crewlink no sentido de perceber que tipo de apoio podia ter da empresa em caso de doença, tendo em conta principalmente que estava longe de casa, e a resposta, por carta, foi clara: “De acordo com o contrato de trabalho, não tem direito a qualquer tipo de pagamento no período em que não trabalha por doença.” De facto, basta uma leitura rápida ao contrato de Angelo, ao qual o i teve acesso, para perceber que no artigo 11, correspondente às faltas, está explícito que “não estão previstos pagamentos em caso de doença”.

Este caso é um entre dezenas que chegam aos sindicatos portugueses quando já não há solução interna, uma vez que os funcionários da Ryanair não têm autorização para serem sindicalizados. “Em Portugal, isso é ilegal, mas esta companhia vive da desregulação”, refere Fernando Henriques, dirigente do Sitava – Sindicato dos Trabalhadores da Aviação e Aeroportos, lembrando, no entanto, que muitas dessas ilegalidades acontecem em conivência com o governo.

Como exemplo, lembra que, em 2016, o Sitava assinou um contrato coletivo com a associação patronal das empresas do setor do handling – serviços prestados em terra para apoio às aeronaves. O sindicato espera agora que o governo publique uma portaria de extensão para que sejam abrangidas as empresas que não cumpram uma contratação coletiva, como é o caso da Ryanair. Essa publicação tem como prazo máximo o final de agosto mas, em sede de negociação, o governo admitiu ao Sitava que a companhia já ameaçou deixar de voar de Portugal caso seja obrigada a cumprir um contrato coletivo de trabalho.

Contradições

Tal como o “SOL” avançou numa reportagem publicada no fim de semana, ao contrário do que acontece noutras companhias aéreas, na Ryanair, o custo com os cursos iniciais e com o uniforme ficam a cargo do trabalhador.

O curso, caso seja pago na totalidade, fica mais barato do que se optar pelo pagamento em prestações. Com esta segunda opção, o valor aumenta e é dividido em prestações, retiradas todos os meses ao ordenado do primeiro ano de trabalho. Também o uniforme tem de ser pago pelo trabalhador e esse valor é igualmente descontado no ordenado do primeiro ano. Mas se entretanto sair da empresa, o uniforme tem de ser devolvido.

No entanto, a Ryanair, em resposta ao i, garante que a empresa oferece formação gratuita e um pagamento anual referente ao uniforme que pode atingir os 425 euros.

Carla, assistente de bordo há um ano, garante que pagou 2400 euros pelo curso, e Rui (nome fictício), assistente de bordo da empresa há cinco anos, afirma que, além de pagar curso e uniforme, paga também 25 euros pelo cartão que o identifica e 75 euros pela licença de navegação. “A Ryanair dá um subsídio de 30 euros por mês que abrange todos esses custos e que, claramente, é insuficiente”, refere.

A juntar a este investimento inicial, os trabalhadores contam com um ordenado feito com base nas horas passadas no ar. “Só começamos a receber a partir do momento em que o avião se põe em posição na pista e para no segundo em que aterramos”, conta ao i. Ficam assim de fora as horas passadas no aeroporto quando há atrasos, ou o tempo passado em briefings e formações.

Mas a Ryanair, ainda em resposta às questões enviadas pelo i, garante que o pessoal de cabina “goza de excelentes condições de trabalho” e que, por isso, atualmente existe uma lista de espera de mais de 3 mil jovens à espera de se juntar à equipa”.

E quanto às notícias que falam em “pressão” exercida sobre a tripulação para as vendas a bordo, a Ryanair prefere falar em “incentivo”, até porque “a tripulação é recompensada” por esse esforço com um bónus de vendas. “Ao longo dos últimos cinco anos, a venda de raspadinhas gerou mais de 2 milhões de euros, doados a 50 instituições de caridade em 12 países”, explica a Ryanair. No entanto, lembra que “a segurança dos clientes está acima de qualquer outra coisa, inclusive das vendas”.

Mas imaginemos o cenário relatado por Rui. “Num voo Lisboa-Porto ida e volta temos de vender o equivalente a cerca de 1,50 euros por passageiro. Tendo em conta que cada voo tem cerca de 160/180 passageiros, as vendas têm de chegar aos 500 euros durante uma viagem de 40 minutos. Como imaginam, pouco sobra para mais do que andar com o carrinho das vendas para trás e para a frente.”