Trás-os-Montes e a buzina do ti Amílcar

Durante o verão, o SOL traz-lhe memórias das férias grandes de várias personalidades. Hoje continuamos com Tiago Patrício.

Para mim, as férias grandes começavam no dia 1 de Junho (com o passeio do Dia Mundial da Criança à Barragem de Vale de Ferreiros) e duravam quase até ao final de Setembro. Houve um ano em que as aulas começaram em Outubro, uma festa para nós, habituados a vaguear entre a cozinha construída no anexo, a rua onde mal cabia um carro, o adro da igreja e as devesas onde capávamos melancias, colhíamos ameixas e apanhávamos as primeiras maçãs, verdes e ácidas, que arrojávamos uns aos outros até que um de nós desatava a chorar e ia fazer queixa à mãe ou à tia velhaca.

O segundo sinal chegava com o 10 de Junho e com a romaria da malta de Carviçais à Quinta do Sarmento (em Freixo de Espada-à-Cinta), os meus pais nunca iam, mas havia um vizinho, o Joel, filho do ti Amílcar, que tinha fama de ajuizado e que pedia à minha mãe para me levar na carrinha dos pais (uma Nissan Urvan com uma buzina secreta que imitava o som da polícia americana). Lá para as oito e meia partíamos do largo do Café Lisboa e seguíamos em caravana pela Nacional 220. O ti Amílcar ligava a buzina à passagem da Fonte do Seixo e nas ultrapassagens. Tudo o que queríamos era ouvi-la só mais uma vez.

Quando chegávamos ao ribeiro ainda era muito de manhã e fazia frio à sombra das árvores. Marcavam-se os lugares, procurava-se lenha para as fogueiras, retemperavam-se as carnes, metiam-se as garrafas de vinho na água. Apesar de ser feriado os garotos apanhavam punhadas por tudo e por nada, a maioria em adiantado para o resto do dia. Eu não tinha mão de pai nem de mãe ali ao pé para as lambadas nem para os puxões de orelhas e ficava encolhido o melhor que sabia para digerir a vergonha de não poder acompanhar os outros. Às cinco da tarde, bem comidos e bem bebidos, regressávamos à aldeia (ainda a tempo de assistirmos ao final do filme sobre o Camões na televisão).

O sinal definitivo das férias grandes vinha com a festa do S. João, com as fogueiras alimentadas a rosmaninho e a alecrim, mais os alhos-porros arrancados das hortas e eu a escapar-me de casa com vinte escudos nas sapatilhas, a entrar no soto da Fátima para comprar um gelado de dezassete e quinhentos, uma pedra de gelo verde, antes de desatar a correr até à Fonte do Prado onde se ouvia música de baile e havia dois fios com lâmpadas azuis e amarelas a cruzar o largo. Depois começavam as danças de roda em que dávamos a mão às raparigas e o meu gelado metido à boca em duas dentadas com o gelo a queimar as gengivas. A festa acabava à uma da manhã, a hora em que as luzes se apagavam e os rapazes mais velhos começavam a caça aos vasos até às quatro ou cinco da matina. Aos quinze anos comecei a acompanhá-los pelas ruas, alumiados por focos e isqueiros, a entrar em quintais, a trepar às varandas, a forçar as portas empenadas dos anexos. Carregávamos os vasos para cima das carroças puxadas por três ou quatro rapazes mais fortes até à Praça. Pouco barulho que o dono tem uma caçadeira de dois canos.

E na manhã seguinte, quando os feirantes chegavam para montar as tendas da feira do dia 24 encontravam o chafariz cheio de vasos e de carroças empinadas. Tudo material emprestado para exposição local e universal.

É claro que havia ainda os meses de Julho e Agosto para queimar, com umas descidas às Lagas da Cigadonha ou à ribeira da Codiceira e uns mergulhos em tanques pintados com tinta azul clarinha a fingir piscinas, como o do Rego do Sapo, mas isso era mais para as raparigas, com as conversas delas e os segredinhos delas. Durante as férias só as víamos nos arraiais das festas, em grupinhos ou com os pais nas esplanadas dos cafés. Na primeira semana de escola nem as conhecíamos de tão mudadas, pareciam umas senhorinhas e nós uns bardinos de cabelo crespo e ainda mais tisnados por aqueles meses a correr o cão debaixo da torreira transmontana.

No início de Setembro havia a romaria a Santo Antão da Barca, nas margens do antigo rio Sabor, onde se juntava gente de muitas aldeias, pernoitava-se ao ar livre, de sexta-feira para sábado, havia bandas filarmónicas e às vezes os romeiros de aldeias rivais pegavam-se, o que era uma coisa muito apreciada entre os convivas porque acrescentava uns parágrafos à tradição do santuário. Aquela era a festa que anunciava a época das colheitas e o final das férias de Verão, antes de a miudagem regressar à escola e os pais aos seus trabalhos, a maioria para lá dos Pirinéus.

E depois, numa certa manhã de Setembro apanhei o autocarro no largo do Café Lisboa e oito horas depois apeei-me no Campo das Cebolas, sem saber que não haveria mais férias daquelas.

Tiago Patrício

Funchal, 27/01/1979 (38 anos)

Escritor