As cigarras, o barulho do gelo no copo de vinho, o arrastar das cadeiras. Primeiro era o som, o vento a abanar cortinas e a roçagar os móveis, o aviso da trovoada, as moscas – a sonolência das tardes pesadas em que o ar parece ter existência física e opressora. Os adultos estão bêbados de vinho refrescado com gelo, os seus gestos são lentos, torpes, condicionados pelos vapores etílicos. As crianças ora estão deitadas, ora correm, ora se cortam porque se movem sem interferência dos adultos.
“– Papá, não tenho carta de condução.
– Já te disse para tirares a carta.
– Papá, tenho 15 anos.”
Os adultos são crianças birrentas, irresponsáveis, que acusam sem provas a empregada de casa e a sua filha de roubarem toalhas. Incapazes de se cuidarem a si próprios – como diríamos em linguagem judicial, inimputáveis –, deixam as crianças crescer sozinhas, obrigadas a ser adultas, a dar sangue para os pais que se ferem entre bebedeiras, a conduzirem automóveis apesar de menores.
Lucrecia Martel sabe do que fala. Nascida em Salta, no noroeste da Argentina, conhece bem essa atmosfera quase febril dos dias quentes e húmidos em que as ventoinhas lutam ingloriamente para conseguir mover o ar. E depois, de repente, do céu cai um dilúvio bíblico que parece afirmação de presença das nuvens. E as luzes apagam-se e os hospitais têm de recorrer ao petromax para consultar os doentes.
Um ambiente doentio que conjuga a pasmaceira dos dias, a opressão do clima, o peso da religião (como essa aparição da Virgem num tanque de água de uma casa que suscita tanta notícia de televisão) e as relações pessoais em desagregação.
A “La Ciénaga” do título original quer dizer pântano, mas é igualmente um lugar concreto. Um lugarejo de 712 habitantes na Grande Salta onde, além do trabalho, pouco mais há para preencher os dias. No interior argentino, a televisão, os assados de domingo, as discotecas e a piscina de alguém são o pouco que há para escolher na atividade de lazer.
A história gira em torno de duas famílias. Mecha (Graciela Borges) e Gregorio (Martín Adjemián) são um casal abastado de alcoólicos cuja existência gira à volta da garrafa e das queixas sobre os roubos e a preguiça das empregadas – para fugir ao calor da cidade, têm uma casa de fim de semana em La Ciénaga, onde grande parte da ação do filme se passa. Tali (Mercedes Morán) e Rafael (Daniel Valenzuela) vivem mesmo em La Ciénaga, numa casa que está sempre cheia do barulho de crianças.
Desde o princípio, desde os primeiros sons ampliados do filme, que “O Pântano” parece estar a desabar sobre os seus personagens. Como se todos aqueles cenários de vida existissem na iminência de ruir ou de implodir, levando consigo quem neles pisa. Como se a toda aquela gente lhe doesse a existência, lhe doesse estar viva. Como se aquela piscina imunda, cuja água esbranquiçada não deixa ver o fundo, fosse a metáfora perfeita para aquele mundo.
Toda a gente passa o tempo na cama ou na casa de banho, não como se tudo fosse naturalmente íntimo, mas como se tudo fosse garantidamente irrelevante. Entre a decadência adulta e o desconhecimento infantil, entre quem perdeu a estrada e quem não sabe para onde ir, circulam as personagens. Discutindo a possibilidade de ir à Bolívia comprar o material escolar para a catrefada de crianças como se fosse a derradeira aventura. Ou à caça nos pântanos – divertimento para adultos e crianças.
“O Pântano” é como essa vaca que irá morrer por não se conseguir soltar da lama onde se enterrou e olha suplicando que a ajudem. Está viva, respira e ainda se mexe, na sua luta infrutífera para se libertar, sabendo nós que a atitude mais decente será esse tiro de misericórdia que só ouviremos à distância.