O que se pode fazer com três bêbados, um ator sorumbático e uma noite com neve, misturando o riso, o drama e a melancolia numa só viagem de táxi, é o exemplo da mestria de Jim Jarmusch e do extraordinário que é este filme, dividido em cinco partes, que não se parece com nada.
Começa por transformar Winona Ryder numa extraordinária taxista com o sonho de ser mecânica (papel escrito a pensar nela), a praguejar de forma natural, perante uma Gena Rowlands fascinante no seu papel de agente de castings farta de realizadores, sempre à procura de novas estrelas, rostos desconhecidos, matéria bruta.
O primeiro episódio deste filme de táxis começa por ser o mais sério, embora a forma como Winona Ryder compõe a sua personagem de maria-rapaz desmazelada, óculos de sol maiores que a cara e uma série de ferramentas presas à cintura como porta-chaves seja, em si, hilariante.
No seu andamento a favor dos ponteiros do relógio (lembrando sempre que todas as histórias se passam no mesmo momento, a diferentes horas devido ao fuso horário), a história seguinte passa-se em Nova Iorque, com um negro (Giancarlo Esposito) a tentar apanhar um táxi em Manhattan, no princípio dos anos 1990, e a ser ostensivamente ignorado.
Só o imigrante leste-alemão (o Muro não tinha caído há muito) que não conhece Nova Iorque, fala mal inglês e nem sequer sabe conduzir um carro automático (sempre a carregar no travão com o pé esquerdo à procura da embraiagem) é capaz de parar para o recolher. Um negro em Manhattan era quase um alien como Helmut, chegado de um país que deixara de existir.
Yo Yo acaba a conduzir e cruza-se com a cunhada (Rosie Perez) que leva para casa contra vontade desta, e entre os dois sucedem dos diálogos mais engraçados de todo o filme, com a característica de se reduzirem a um matraquear de palavras que vão subindo de tom, como se fossem batalhas.
Cruza depois o Atlântico para em Paris colocar Isaach de Bankolé a aturar parvoíces de dois camaroneses armados em importantes, que acaba por expulsar do táxi, para a seguir apanhar uma cega interpretada por Béatrice Dalle que o deixa completamente fascinado. E a quem faz perguntas tontas, indiscretas.
Roberto Benigni interpreta o taxista seguinte. Na madrugada deserta de Roma acelera por ruas sem sentido, passa por polícias na mecha e acaba a transportar um padre a quem insiste em chamar bispo e resolve confessar as suas histórias sexuais, para mal dos pecados do religioso. O padre não quer, não se sente muito bem (os comprimidos para o coração caem-lhe da mão), mas é incapaz de evitar aquela torrente de conversa.
Da abóbora à ovelha Lola “de movimento refinados” – ficou-lhe o trauma depois de o dono a ter enviado para o talhante – e até chegar à cunhada, cujo rabo lhe fazia lembrar a abóbora, e os colãs de lã a ovelha.
A confissão é um jorro de palavras que brota sem cessar e o taxista nem se apercebe do mal que o padre se sente no banco de trás.
A Roma de Benigni desemboca na Helsínquia de Matti Pellonpää, ator-fetiche dos realizadores Aki e Mika Kaurismaki (que dão nomes a personagens) que morreu cedo, aos 44 anos (em 1995). Neste episódio é um taxista com uma história de fazer chorar o mais empedernido finlandês. Na verdade, acontece um duelo de humor melancólico sobre quem tem a experiência mais triste para contar, entre os bêbados que falam das desgraças sucessivas do amigo inconsciente pelo álcool e o taxista, com a sua tragédia familiar.
O mesmo momento na Finlândia, que em Los Angeles é o final de tarde, é na madrugada do outro dia em Helsínquia. O cenário não podia ser mais diferente, há neve lá fora e a solidão parece grande: o dia começa a clarear com o acabar do filme. E o amigo dos bêbados já pode ser deixado abandonado no passeio, perdedor no duelo das desgraças.