Os estados indianos de Haryana e Punjab, estão por estes dias envolvidos num verdadeiro estado de guerra. O anúncio da condenação de superpopular guru Gurmeet Ram Rahim Singh, na passada sexta-feira, espoletou uma onda de violência no norte do país, que resultou na morte de 38 pessoas, no ferimento de cerca de 250, na detenção de mais de 2500, e obrigou mesmo as autoridades a terem de fintar protestantes e jornalistas, na hora da leitura da sentença, marcada para esta segunda-feira.
Ao contrário do procedimento habitual, que pressupõe a presença do réu em tribunal a fim de conhecer os termos da sua condenação, foi o juiz responsável pelo processo contra o guru, a deslocar-se – de helicóptero e em segredo – até à prisão de Rohtak, onde lhe comunicou que terá de cumprir uma pena de prisão de 20 anos, pelo abuso sexual de duas mulheres.
O clima de exceção vivido naqueles estados, mas também em algumas zonas de Nova Deli, resultou ainda na mobilização de tropas, no isolamento e encerramento de escolas, estradas e outros espaços públicos, na imposição de um recolher obrigatório, no corte das comunicações móveis e na suspensão do acesso à Internet.
A reação de fúria dos milhares de indianos que protagonizaram os motins dos últimos dias explica-se, em grande medida, no fenómeno de popularidade representado por Ram Rahim Singh. O “guru do bling” – como é muitas vezes chamado, pelo uso de roupas e adereços coloridas e espampanantes – é um dos homens mais poderosos do país e lidera há mais de 25 anos a Dera Sacha Sauda, uma seita que conta com 60 milhões de seguidores em todo o mundo – retrata-se como uma “organização espiritual e de bem-estar social sem fins lucrativos” – e que, para além dos 400 hectares de terreno onde se ergue o seu quartel-general, é detentora de escolas, de um hotel e de um estádio de críquete.
Para além disso, o guru de 50 anos, que apoiou publicamente o governo de Narendra Modi, em 2015, já encarnou diversas personagens no grande ecrã, é estrela de rock e ainda tem a sua própria linha de produtos alimentares. “[Sou] um santo espiritual, um filantropo, um cantor versátil e um desportista multi-talento”, descreve-se no seu website.
Ao modo de vida ostensivo e luxuoso, Ram Rahim Singh soma ainda uma postura controversa e provocadora. A satirização de figuras religiosas e personalidades públicas incompatibilizou-o com as comunidades sikh e hindu e os rumores de que teria forçado centenas de seguidores da sua seita a submeter-se a operações cirúrgicas de castração, para “ficarem mais próximos de Deus”, contribuíram para criar tantos inimigos quantos os adeptos que já tinha.
O guru rejeitou as acusações acima referidas, para além das suspeitas de alegada associação a crimes de homicídio, que também lhe valeram investigações judiciais.
Flagelo nacional
O impacto da condenação do guru a 20 anos de prisão – dez anos por cada vítima, com base em acusações que remontam a 2002 – voltou a trazer para o debate público local e para a atenção da imprensa internacional a situação de absoluto flagelo que se vive na Índia, resultante do número elevado de situações de abusos sexuais e crimes relacionados.
De acordo com os dados mais recentes do Gabinete Nacional de Registos Criminais da Índia (NCRB, na sua sigla em língua inglesa), só no ano de 2015 foram reportadas 34.651 violações, sendo que, em 95,5% dos casos, as vítimas conheciam o seu agressor. Para além disso, o NCRB contabilizou 4.437 tentativas de violação.
Números que, só por si, já são assustadores, mas que segundo as organizações de direitos humanos, estão longe da realidade. Kavita Krishnan, da associação “All India Progressive Women” explicou à Al-Jazeera que o “crime de violação é altamente sub-reportado” na Índia, uma vez que existe enorme receio, quer das vítimas, quer das suas famílias, de que o abuso sexual possa “limitar as perspetivas de casamento”. “O principal problema são as estruturas formadas na sociedade indiana que continuam a restringir a autonomia das mulheres, especialmente a sexual, em nome da tradição”, considera Krishnan.
Aliada à tradição está o crescimento brutal das cidades nas últimas décadas. Em declarações à “Newsweek”, o psicólogo Rajat Mitra diz que a aplicação da lei é “muito pobre” nos grandes centros populacionais da Índia e dá aos molestadores uma enorme “sensação de anonimato”.
A violação e homicídio de uma jovem de 23 anos num autocarro em Nova Deli, em 2012, por um gangue composto por quatro homens, motivou uma série de alterações legislativas com vista à maior punição dos infratores, mas pouco contribuiu para reduzir o número de crimes sexuais – o NCRB mostra que, em 2015, 80% a 90% dos julgamentos relacionados com aquele tipo de crime ainda estava pendente na justiça.
Citado pela “Newsweek”, o advogado Rajinder Singh diz que uma das razões para esta triste realidade está relacionada com a falta de equipamento da polícia indiana, nomeadamente de meios para “recolha de sémen e de outras provas biológicas”. “Esta realidade destrói quaisquer hipóteses de condenação com base em provas científicas”, lamenta.
Um dos passos que as ONGs e algumas autoridades locais querem ver dado é o da criação de uma base de dados especificamente direcionada para registar todos os autores de crimes de abusos sexuais, algo que apenas existe a nível local mas que, para já, ainda tem pouca repercussão a nível nacional.