A vida toda tem uma banda sonora. Os sons acumulam-se à nossa volta e servem-nos, muitas vezes, para evocar memórias do passado. Momentos felizes, tristes, momentos de solidão, festas, momentos de euforia, de recolhimento. Aquele episódio único quando na rádio passava uma música que ficou para sempre associada a esse ponto único da nossa existência.
Depois, claro, está o amor, tema imprescindível da cultura popular do século XX. Sem amores e desamores, desapareceria todo uma parte do cancioneiro do mundo e quem nos ensinaria a apaixonar, a seduzir, a recuperar dos tombos que o coração nos prega?
“Once/No Mesmo Tom” é assim como um compêndio em formato sem alarido de um musical sobre o amor. É uma pequena joia emocional, uma coleção de canções em jeito de filme, ou um filme em jeito de coletânea de canções.
É uma obra sobre música, sobre músicos e, ao mesmo tempo, sobre a vida. Sobre o que é isto de ser um músico de rua a sonhar com algo mais, mas que ao mesmo tempo só toca as suas próprias canções à noite, quando a audiência não existe ou é reduzida, porque de dia tem de tocar o que as pessoas conhecem para ganhar uns trocos. Ou é assim pelo menos que o protagonista (Glen Hansard) se explica.
A John Carney interessa-lhe a maneira como as canções surgem, o processo de construção, tanto quanto contar uma história. E a história desse primeiro empurrão – a existência ou não de uma carreira está, muitas vezes, no arriscar, no dar o primeiro passo.
Há no filme o contraste do músico instintivo, que saca as canções das entranhas, das histórias pessoais, e a imigrante com formação clássica, mas que ganha a vida vender flores nas ruas, que se sente feliz porque conseguiu um trabalho de limpeza numa casa. Glen Hansard é um músico instintivo e daí parte a sua relação com a música. Markéta Irglová é uma música com formação clássica.
Projeto de músicos – Carney era baixista da banda de Glen Hansard e convidou-o para interpretar o papel depois de Cillian Murphy (que foi músico antes de ser ator) ter desistido do projeto por não querer contracenar com Markéta Irglová, que não é atriz e tinha apenas 17 anos aquando da rodagem do filme (teve que pedir autorização na escola para poder ausentar-se durante as filmagens). Hansard, tirando um pequeno papel de músico em “Os Commitments”, em 1991, não tinha qualquer outra experiência de ator.
Portanto, se o filme pode titubear, por vezes, na naturalidade das interpretações, compensa em muito na autenticidade musical. Ajudou que muitas das cenas de rua, por exemplo, tivessem sido filmadas de longe (também porque a produção não tinha conseguido as necessárias licenças para filmar exteriores em Dublin), o que permitiu aos protagonistas dominarem um pouco o nervosismo.
A julgar, por exemplo, pela reação de Bob Dylan, Carney conseguiu mesmo transmitir essa essência do músico perante a sua criação. Dylan gostou tanto do filme que convidou Hansard e Irglová para fazerem a primeira parte de alguns concertos da sua digressão mundial.
Produção difícil que esteve anos à espera de apoio no Irish Film Board – recebeu-o na condição de não se ultrapassarem os 150 mil euros orçamentados –, foi feito muito à custa do desenrascanço, com interiores filmados em casas e lojas de amigos e exteriores sem licenças, numa rodagem limitada a 17 dias. O fato de haver nele muito material autobiográfico, com histórias do relacionamento à distância de Carney com a namorada que vivia em Londres, enquanto ele vivia em Dublin; da relação especial entre Hansard e Irglová (conheceu-a através do pai dela, músico e promotor dos concertos dos The Frames na República Checa) que resultaria em dois discos assinados como The Swell Season, antes de Irglová se mudar para Nova Iorque, começar uma carreira a solo, conhecer alguém e ir viver para a Islândia. O filme ficou como legado e deixou um culto que se foi consolidando ao longo destes dez anos.