Estamos num ano de todas as efemérides: são os 500 anos desde que Martinho Lutero afixou as suas 94 teses na porta da igreja; os 50 anos da edição dos Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez; os 50 anos das cheias de 1967 em Portugal; os 100 anos das “aparições” de Fátima; os 50 anos da edição da primeira aventura de Corto Maltese, A Balada do Mar Salgado; e, claro, os 100 anos da Revolução Bolchevique.
Apesar da tomada do Palácio de Inverno fazer um século, há paradoxalmente, ou talvez não, poucos livros editados em Portugal sobre o histórico acontecimento. É óbvio que a história é feita pelos vencedores, e que há uma tentativa de reduzir ao silêncio qualquer veleidade de um pensamento diferente.
Em contracorrente com este facto, está a edição da Tinta da China do clássico A Revolução Russa, da historiadora australiana Sheila Fitzpatrick. Num tema que suscita tantos ódios e paixões, surpreende o cuidado em trabalhar de uma forma séria o período em análise. A historiadora começa por sublinhar os limites do nosso conhecimento, contando a célebre anedota real com um dirigente chinês. «Durante a visita oficial do presidente Nixon à China, em 1972, foi evocada a Revolução Francesa, ocorrida quase dois séculos antes. Segundo relatos da época, ao ser-lhe pedido um comentário sobre as repercussões da Revolução, o primeiro-ministro Chu En-Lai terá afirmado que ainda era demasiado cedo para aferir a sua importância». A historiadora nota que, provavelmente, Chu En-Lai estaria a aludir aos acontecimentos do Maio de 68, mas que de qualquer forma a resposta do dirigente chinês era uma excelente constatação: «É sempre demasiado cedo para determinar o alcance dos grandes factos históricos, pois o seu impacto não é estático, encontrando-se em permanente mutação, à medida que as nossas circunstâncias pessoais e o nosso ponto de vista privilegiado sobre o passado se alteram. O mesmo acontece com a Revolução Russa, cuja memória se deparou já com algumas vicissitudes e voltará, decerto, a deparar-se no futuro», escreve a autora.
Um dos interesses acrescidos desta obra é o facto de, embora tenha tido a sua primeira edição antes do fim da União Soviética, a sua segunda edição já em 1994, e a presente em 2008, o corpo da obra, com algumas alterações e melhoramentos, mantém-se o mesmo. Longe dos sensacionalismos e das propagandas, este livro é uma notável introdução às razões que levaram à revolução, a sua irrupção, e aos seus desenvolvimentos.
A historiadora escolheu delimitar o seu estudo, desde as circunstâncias sociais e económicas que levaram a Rússia à revolução, a libertação dos servos, o desenvolvimento capitalista no início do século xx, a guerra contra o Japão e a Primeira Guerra Mundial, até ao final daquilo que considerou o fim da «paixão revolucionária», o chamado “Congresso dos Vencedores” em 1934.
Esta ideia que a revolução é um momento de paixão ao qual se segue uma “normalidade” após essa rutura é bastante fecunda. E a escolha de datas permite-nos acompanhar a transição de Lenine para Estaline, e o papel do terror ao longo do processo revolucionário, como instrumento de permanente mobilização das massas.
Finalmente, este livro dá no final um conjunto de pistas de leitura que permitem o leitor interessado aprofundar os seus conhecimentos e saber de um conjunto de obras diversificadas sobre a Revolução de Outubro.
Sem prejuízo de uma explanação maior destas obras, e não seguindo totalmente os conselhos da historiadora australiana, gostava de aconselhar algumas leituras plurais sobre o fenómeno, alguns que foram editadas em língua portuguesa:
– A Revolução Bolchevique 1917-1923, de E.H. Carr;
– A Bandeira Vermelha, de David Priestland;
– Trotski: O Profeta Armado, O Profeta Desarmado; O Profeta Banido, de Isaac Deutscher;
– A Vida Privada de Estaline, de Lilly Marcou;
– Os Dez Dias que Abalaram o Mundo, de John Reed;
– Rumo à Estação da Finlândia, Edmund Wilson;
– Lenine no Comboio, de Catherine Merridale;
– O Jovem Estaline, de Simon Sebag Montefiore;
– October, de China Miéville;
– The Dilemas of Lenin, Tariq Ali;
– Revolution at the Gates, Slavoj Zizek.