Geração i. Alan Stivelman: “Se queres conhecer a humanidade, primeiro tens de ser humano”

De um anónimo millennial argentino, Alan Stivelman tornou-se conhecido pelo  seu primeiro documentário “Humano”, disponível no mundo inteiro através da Netflix. Está a acabar o seu segundo filme sobre conhecimento indígena. Em 2013, esteve cinco meses sozinho nos Andes a acompanhar um xamã, Plácido, enquanto procurava respostas sobre a origem do homem e da humanidade.…

Aventureiros e sedentos de respostas para as suas crises existenciais. Soa familiar a todas as gerações? Sim, soa. Mas se o tempo mudou e as vontades não, porque é que se dá tanta importância ao cirandar dos millennials? 

Nas últimas edições da rubrica Geração i, que retrata os nascidos entre 1985 e 1995, já abordámos o facto de os millennials serem irrequietos e viajarem muito e até mesmo mudanças face a gerações anteriores como estarem mais desligados das religiões e procurarem, ainda assim, respostas na espiritualidade. Os millennials têm salários baixos, casam-se mais tarde, sonham com os seus próprios negócios, esfalfam-se a trabalhar nos seus diferentes projetos e não têm tempo para conhecer pessoas – usam a internet para isso. Até que alguns deles se cansam e deixam tudo para trás para tentar algo novo. 

Os millennials nasceram em épocas de muitas perguntas, demasiadas respostas e poucas certezas. Os livros que leem não são os que os seus conhecidos ou professores recomendam, os documentários que veem não são os que apenas passam na televisão. Desenvolvem paixões e dedicam-se a elas com ferramentas que nenhuma outra geração teve direito.

Seguem ídolos como Jack Kerouac, o escritor canadiano que em período pós Segunda Guerra Mundial, em 1947, largou namorada e tudo o que tinha para viajar à boleia, de mochila às costas, pelo oeste norte-americano. Se Kerouac que não tinha nada e se safou, porque é que os millennials que hoje têm tantas ajudas não haveriam de consegui-lo também?

“O meu pai tinha 20 anos e foi à boleia até ao norte da Europa num camião. Ficou lá a trabalhar numa fábrica e, quando lhe apeteceu, voltou. Ele e os amigos fartaram-se de viajar. Penso que isto já vem connosco, não é só de uma geração, a diferença é que hoje é muito mais fácil para nós nos safarmos, mesmo que não tenhamos dinheiro”, conta Bruno de 27 anos, natural de Braga.

 Os tempos eram outros, o apelo da “rucksack revolution” de Kerouac – a revolução da mochila – caiu que nem uma luva numa geração feita em grande parte de sonhos adiados por empregos em “call centers”, suportados por mesadas dadas pelos pais, sem serem capazes de planear as suas vidas a longo prazo.  Falamos de “uma mudança para longe de casa, feita na estrada, através de todo um novo estilo de vida para os jovens que seria construído sobre a experiência, o prazer, a exploração espiritual, a mobilidade e a autodescoberta”, como descreve a Christian Research Institute, e os trunfos dos millennials são muitos. Hoje sempre se podem fazer à estrada com um smartphone e uma máquina fotográfica ao pescoço, e em caso de se perderem têm sempre um Google Maps à mão, uma recomendação de restaurantes económicos num Zomato ou TripAdvisor. Podem procurar estadias em plataformas de partilha de sofás ou trocar trabalho por uma cama num hostel e “voilá”, viajam sem grandes preocupações.

A Confederação Mundial de Viagens e Estudos da Juventude Mundial (WYSE), questionou mais de 34 mil pessoas de 137 países e descobriu que os jovens que viajam não estão à procura do turismo paradisíaco de “de sol, mar e areia” como as gerações anteriores. Procuram essencialmente gastar menos tempo nas “principais cidades de gateway” e, em vez disso, explorar destinos mais remotos, pondo o conforto de lado em troca de preços baixos ao preferir dormir em ”albergues em vez de hotéis”. Escolhem viagens de mochila a longo prazo por mais de dois meses, sendo que a média de dias fora ronda os 58 dias, em vez de passeios de duas semanas.

Os sítios remotos e as almas perdidas Amanda, de São Francisco, escreve na revista “The Atlantic” essencialmente sobre as suas viagens. 

Em 2012, com 24 anos, foi viajar sozinha pelo mundo. Visitou de mochila às costas a América do Sul, o sul da Ásia, a Europa ocidental e a costa oeste dos Estados Unidos da América. Fez percursos como o trilho dos Incas, esquiou nos Alpes, passeou pela Patagónia e pelos Himalaias. Trabalhou em troca de ter onde ficar, de hosteis a mosteiros budistas, entre outros, mas o que mais a surpreendeu foi a quantidade de pessoas da sua idade que encontrou pelo caminho a fazerem o mesmo que eu, escreveu. E bastam uns cinco minutos pelo Instagram para comprovar isso mesmo. Centenas de millennials todo mundo viajam pelo planeta partilhando fotografias que recebem outros tantos milhares de “gostos”, eternizando sítios extraordinários e remotos com descrições que incentivam outros a largar tudo e partir à descoberta, seja qualquer for o ponto de origem. “Quero conhecer-me melhor e não há melhor forma de o fazer do que a ver-me crescer através do mundo”, resume Inês, de 26 anos, que já viajou por mais de vinte países.  

Da crise existencial ao documentário “Humano

Alan Stivelman é um dos melhores exemplos de millennials que mudaram a sua vida graças a uma mochila às costas e uma viagem mal planeada. Em 2013, Alan tinha 24 anos quando largou tudo em Buenos Aires. Por Skype, contou ao i que estava em plena crise existencial e tudo o puxava para os Andes, local que estudara nos últimos anos devido a uma curiosidade por mistérios arqueológicos ancestrais.

Escreveu 200 questões que o atormentavam há algum tempo e partiu com elas em direção ao Peru.  

A viagem resultou num documentário de hora e meia disponível no Netflix e distribuído por todo mundo. Em “Humano”, acompanha-se a viagem de um jovem decidido a encontrar respostas sobre a origem da humanidade. Numa tentativa constante de autoconhecimento, através de rituais ancestrais da comunidade andina Q’ero, guiado por um xamã, Alan viajou durante cinco meses por paisagens remotas onde respirar não é tarefa fácil e vivendo integrado com uma comunidade que apenas em 1960 teve o primeiro contacto com o mundo ocidental. No final, conseguiu sentir-se humano. Uma resposta individual e, ao mesmo tempo, coletiva.

Estudou cinema. Sempre soube que queria ser realizador?

Lembro-me de ter 14 anos e ver o filme “El Topo” de Alejandro Jodorowsky e de não perceber nada. Mas sabia que um dia adoraria fazer um filme extraordinário como aquele, mesmo que as pessoas também não percebessem nada. Estava a estudar informática mas troquei para cinema e comecei a escrever. Até que decidi comprar uma máquina de filmar e ir viajar.

Como foi voltar a integrar-se na  sociedade depois de estar vários meses nas montanhas?

Hum… Passei cinco meses nos Andes. Tinha 24 anos, estava a meio de uma crise existencial na altura e os Andes eram o sítio que eu andava a investigar nos últimos anos por causa dos mistérios ancestrais arqueológicos. Às tantas, no meio dessa crise, dei por mim a pensar “tenho de me fazer à estrada”. Pareceram-me o melhor sítio para encontrar, e não digo encontrar-me a mim, mas para encontrar as respostas que eu procurava sobre a origem do Homem, sobre a história ancestral da América, a história que não foi escrita. Então comecei a viagem e quando voltei a Buenos Aires foi mesmo bom. Quando chegou o momento de decidir regressar, senti que já tinha o suficiente. Encontrei aquilo de que tinha estado à procura. 

Sente que os seus amigos partilhavam essa crise existencial ou sentia-se sozinho?

Sentia-me mesmo muito sozinho. Imagina, o meu filme estreou na Polónia, no Festival de Cinema de Varsóvia. Eu estava tão nervoso que fui convidado e não fui à primeira exibição. Estava em pânico, não podia imaginar como é que o filme ia ser recebido. Pensei: “ninguém tem este tipo de crise, toda gente se sente bem e completo, sou a única pessoa do mundo que tem crises existenciais sobre estes assuntos, ninguém vai querer saber”. Mas quando foi a segunda exibição, fui e estava tudo cheio, só gente com o mesmo tipo de crise, cheios de problemas e perguntas, pessoas que não sabiam como haveriam de começar as suas próprias viagens. 

Povos indígenas de todo o mundo partilham do mesmo tipo de rituais e conhecimentos e medicinas, ainda que com nomes e tradições diferentes, mas todos adoram a natureza. Qual terá sido o momento de desconexão dos povos ocidentais com esta dimensão do mundo?

Os indígenas que não foram conquistados mantiveram estes rituais, mas os europeus também tinham, só que foram proibidos de os realizar.  Penso que há demasiadas variáveis mas uma delas sem dúvida é a implementação da religião, o desenvolvimento da economia e da política. O aparecimento do materialismo. O Ocidente tem um avanço grotesco a nível material mas não espiritual. Não sei… Nos Andes dizem que estamos na época do regresso do Pachacuti, o retorno da origem. Na índia é o fim do Kali Yuga, a idade do vício, do sangue, do medo. São várias as culturas no mundo inteiro que falam do mesmo, que temos de passar todo este ciclo até chegarmos outra vez a esse estado de conhecimento. E, provavelmente, no futuro haveremos de começar tudo de novo. Agora, somos abençoados por viver uma transição. A nossa geração está a quebrar regras e a começar todo um mundo novo, temos um potencial imenso. Sou extremamente positivo em relação à nossa evolução enquanto Humanidade, que é lenta mas há de chegar a um equilíbrio.

Vê esta geração como agente de mudança? 

Penso que temos um desafio imenso à nossa frente. Hoje em dia é tão fácil dispersarmos as nossas atenções com a tecnologia e tudo o resto. Temos um imenso potencial mas um enorme obstáculo em cumprir a nossa missão e objetivos. Acho que temos as ferramentas, as armas mas tudo depende da forma como as vamos usar. 

Como é que conheceu o Plácido?

Conheci-o em Buenos Aires, em 2009. Ele era um guia turístico a viajar patrocinado por agências de viagem, para atrair pessoas ao Peru. Quando o conheci não fazia ideia de que ele era um xamã, um paqo (sacerdote, curandeiro). Falei com ele sobre as construções ancestrais que estão submersas no Lago Titicaca e ele começou a falar da mitologia ancestral e por aí. Guardei o contacto dele e, quando viajei para os Andes, era a única pessoa que conhecia por lá. Telefonei-lhe de Copacabana, na Bolívia, e no primeiro dia em que nos encontrámos, ele disse-me: “Se queres aprender sobre a humanidade, primeiro tens de ser humano”. Não percebi o que ele estava a dizer. Falámos o dia todo e conseguia sentir a minha mente a partir. Foi nesse momento que comecei a minha caminhada com ele, que durou cinco meses.

Encontrou resposta para as 200 questões que preparou a viagem?

Eu tinha 200 questões, mas na primeira semana que estive com o Plácido tive de reescrevê-las todas, uma a uma. Eram todas muito ingénuas, tontas, do género: “O que é Deus?”, “O que é a natureza?”, “Porque morremos?”. E todas estas perguntas eram separadas de mim. O que o Plácido fez foi tentar personalizar as minhas questões, tornando-as em perguntas como: “Quem sou eu?” em vez de “quem somos nós”. Então a minha primeira pergunta era “qual é a origem do Homem tendo em conta a cultura Andina?”. Aí o Plácido disse-me que antes de poder responder a essa questão, primeiro, eu tinha de ser humano. Foi a primeira pista dele para me fazer perceber que eu não era nem nunca tinha sido humano e que provavelmente 99% das pessoas do mundo também não. 

Descobriu o que significava esse “ser humano”?

Sermos humanos é algo que se conquista, que se alcança. Não é algo possível de discutir verbalmente, é um estado da mente, um estado de ser. Tens de estar consciente, um estado de consciência sobre ser-se humano. E é só quando se alcança isso que se consegue perceber. Se nós desejamos mal uns aos outros, se nos magoamos, não estamos em harmonia com as regras da natureza, mas sim com outro tipo de forças, que não nos querem ajudar a ser humanos. Essas forças querem manter-nos animalescos, mecanizados. A nossa viagem, tanto a interna como a externa, é a melhor forma de conseguirmos responder a essa questão. No caso dos andinos, existem rituais específicos para quebrar essas barreiras e abrir essas portas. É só uma questão de perceção e consciência. 

O que fez durante os cinco meses?

Estive sempre com ele. Fui o companheiro dele quando teve grupos de viajantes, não estávamos sempre a filmar. Filmei mais os momentos de relaxamento, eu nem sequer sabia que estava a fazer um filme, nem sequer estava preparado para isso. Só queria gravar a minha caminhada, o meu percurso para a eternidade.

Qual foi a parte mais difícil de toda esta viagem? Segundo o que dá para ver no filme, deve ter havido algumas.

Sim. Houve três desses momentos da viagem que me marcaram. Duas vezes achei que ia morrer. Estava no monte Ausangate, naquela cena em que nos banhamos  num lago gelado, mas não foi essa a parte difícil. Na noite anterior, quando subi essa montanha,  apanhei uma febre muito forte. Comecei a delirar, a dizer coisas sem sentido e o Plácido disse-me : “bem, não te preocupes, tu vais morrer provavelmente, por isso eu aviso a tua mãe” (risos).  

Um bom incentivo, portanto.

Sim, só lhe pedia “não, por favor, não me digas isso” (risos). Nessa noite havia uma energia muito forte, era o Pachamama e toda a energia no ar parecia uma dança por todo lado. Fui atropelado por esta energia. O Plácido avisou-me que o meu corpo não estava preparado fisicamente para se conectar com tamanha energia, apenas o meu corpo espiritual. Daí que me mandou treinar para me habituar à energia, mas a verdade é que o meu corpo físico ficou doente.

E quando é que voltou a pensar que ia morrer? 

No ritual de contacto com os Apus, uns seres espirituais que são chamados para transmitir conhecimento aos humanos. Representam os espíritos das montanhas, como se cada montanha tivesse uma vida, um Apu. Há uns sacerdotes especiais, os xamãs, que conseguem entrar em contacto com eles para que venham cá baixo, a umas pedras especiais, enquanto todos nós estamos no escuro. Quando vieram, eu comecei a entrar em pânico. Sempre fui uma pessoa que não acredita nessas coisas mas que gostava de acreditar. E essa experiência explodiu na minha mente. Sinto que entrei em contacto com um mundo espiritual que não havia forma de recriar com equipamentos ou teatros. Os sons, as sensações, uma viagem de outro mundo e claro que eu comecei a entrar em pânico.  Estavam a falar comigo em linguagem quechua.    

E o que é que diziam essas vozes? 

Disseram-me para lhes fazer uma pergunta, mas se eles (os espíritos) considerem a tua pergunta estúpida, levas com um castigo. Então eu comecei a tremer e não tinha confiança em mim para ler as cinco perguntas que tinha preparado. Então saiu-me “porque é que estão aqui e qual é o vosso propósito na Terra?”. Quando terminei o espírito começou a gritar, uns sons horríveis, eu estava cheio de medo. Depois comecei a sentir-me relaxado e a perceber que como nos Andes esta comunidade não tinha comunicação com o mundo exterior, todas as tradições e curas medicinais foram passadas através das meditações e contactos com estes Apus. 

Consumiram alguma droga para esse ritual?

Não.

Disse que era um rapaz da cidade e teve todas estas experiências intensas e transcendentais . Como é que se sobrevive a isto? 

As experiências foram intensas, mas quando a viagem terminou eu estava feliz. Queria partilhar toda esta experiência com os meus pais, os meus amigos, todo este conhecimento e foi aí que decidi começar a fazer o filme. 

O que queria transmitir? 

O filme é apenas uma pequena introdução ao conhecimento indígena. É o início de uma pergunta. O que eu quero com este filme é que as pessoas o vejam e façam ainda mais perguntas. Não quero dar respostas. Estou a terminar o meu segundo filme sobre indígenas da selva e o mundo espiritual.

O que está a aprender com estes filmes? Está a tornar-se uma pessoa espiritual? 

É muito difícil responder a isso. Não me considero espiritual. Considero-me um ser humano curioso e gosto de passar informação através dos meus filmes sobre conhecimentos e tópicos universais que têm estado escondidos.