O primeiro sinal de felicidade no rosto do capitão (Jean Dasté) que acabou de casar e vem de braço dado até ao rio com a mulher (Dita Parlo) de vestido branco é quando, chegado ao batelão, vestido o fato-macaco, sente o ronronar do motor. Só no Atalante, barco típico de transporte fluvial no Sena, é que a relação daqueles dois começa a sério, a partir dali está a família – e a família inclui o primeiro marinheiro Père Jules (Michel Simon) e o jovem ajudante (Louis Lefebvre).
A vida é aquele barco estreito e comprido onde três homens existiam com os gatos (Jean Vigo substituiu o cão original do argumento por dez gatos vadios), o acordeão, a entrega de encomendas rio acima, rio abaixo. Aquela mulher vem desestabilizar os equilíbrios num mundo masculino – de homens, barco e rio –, um mundo de marinheiros, cuja ideia de chão sólido debaixo dos pés é o da madeira da embarcação.
Não demora até que os ciúmes do capitão se revelem, numa cena que inclui o quebrar deliberado de alguns pratos. A discussão não dura muito e Juliette aproveita para convencê-lo a explorar Paris, a cidade que a fascina, mas ele acaba por arranjar a desculpa que não pode deixar o barco sozinho para não sair.
Quando finalmente a leva a um sítio para dançar, outra cena de ciúmes por causa de um vendedor charmoso, cantor e músico de sete instrumentos, encurta o passeio por Paris. Porém, a cidade exerce um fascínio sobre Juliette e esta não resiste a esgueirar-se durante a noite para a explorar mais um pouco, ver as montras, as luzes.
Os ciúmes são o motor da ação, por causa deles, há ira e arrependimento, incompreensão, decisões tomadas por instinto – é difícil a um homem que sempre viveu num mundo masculino, lidar com o amor de uma mulher, que é um chão mais instável do que os balançares do barco.
Michel Simon, ator fascinante, enche de magia cada cena com esse marinheiro de coração doce e tendente ao álcool, que tenta ser uma voz de serenidade no quotidiano agitado dos ciúmes do capitão. Cuida, recupera, motiva, experimenta a música como terapia. E é ele que acabará por trazer a nova harmonia necessária ao batelão, mesmo se muitas das vezes nos perdemos na sua dicção.
Há uma montagem paralela belíssima, no meio dos sonhos agitados do capitão e de Juliette, cada um na sua cama – ele, no barco, que zarpou dois dias antes do programado para abandoná-la em Paris; ela, no quarto que alugou depois de encontrar trabalho na cidade para sobreviver sozinha –, sofrendo do delírio da falta, da ausência do outro para acalmar a febre dos sonhos.
A forma como Vigo encaixa as peças do amor é intensa e breve. Um silêncio de alguns segundos, um primeiro passo dela, um recuo dele; mais do que medo, preparação. Há um salto, a queda, um beijo intenso e uma câmara que voa para se ver o batelão inteiro desde o alto, navegando harmoniosamente no rio. E aquele mundo de homens completava, finalmente, a sua transformação.
Com a insistência em filmar muitos dos exteriores à noite (o inverno chegou rigoroso, a rodagem atrasou-se, as noites esfriaram e a saúde de Vigo viu-se afetada, contribuindo para acentuar a tuberculose de Vigo que provocaria a sua morte prematura), o realizador juntou uma componente de magia às imagens, nesse jogo de luzes do barco, com as casas das margens e o próprio nevoeiro que se levantava do rio.
O filme está longe de manter uma narrativa convencional, facto que há época lhe valeu adjetivos de confuso e incoerente, no entanto, ainda hoje, mantém a frescura, o naturalismo da relação com o barco, o rio e as suas margens, a capacidade de evitar a claustrofobia, mesmo nos espaços mais recônditos – Vigo coloca a câmara como se mais um passageiro se tratasse –, esse lado de magia fluvial que a noite e a cena do bailado do capitão debaixo de água acentuam. Se o amor e o ciúme são os motores da narrativa, o grande protagonista é mesmo esse barco longo e estreito, entidade viva na paisagem de águas encaixadas e o filme presta-lhe essa homenagem usando o seu nome como título.