Lisb’On. Dançar no jardim a partir de hoje

Na quarta edição, o Lisb’On passa dos limites e adiciona um segundo palco. A música eletrónica, de prática analógica ou digital, continua a ser um chamariz mas o verde do Parque Eduardo VII e o horário diurno também são regra para esta atração.

Vulcão islandês

Dos Sigur Rós a Bjork, que até se mudou para Londres para poder estar no centro do acontecimento e episodicamente regressou à Islândia, quase toda a música da ilha tem erupções vulcânicas. Na cartilha sonora dos Kiasmos, dupla formada pelo compositor em ascenção Ólafur Arnalds, e Janus Rasmussen dos Bloodgroup, este das Ilhas Faroe, lava não falta. Arnalds era engenheiro de som dos grupos de Rasmussen e os dois acabaram por alargar a amizade a um compromisso musical, construído a partir das notas minimalistas do compositor e das texturas de Rasmussen. Pela primeira vez em Portugal, vêm esperar que o amor aconteça com o EP “Blurred” na calha, e uma remistura do aclamado Bonobo para impressionar possíveis desconfiados. Como seria de esperar, a primeira talhada de música nova em dois anos foi escrita no Outono islandês. O que para o primeiro dia de um mês de transição é capaz de ser vistoso.

O lado negro da força

Na ordem mundial da música eletrónica, o último nome de Sven Vath é lenda. E as lendas precisam tanto de apresentações como o techno precisa de palavras para expressar uma mensagem. Esta música fala diretamente para o corpo e, embora habitualmente, não precise de ser iluminada, no Lisb’On será banhada pela tão gabada luz lisboeta. Em pleno centro da cidade, vésperas da rentrée política e empresarial, Sven Vath terá nas mãos a força da batida musculada. Trinta anos de vida a dar música aos outros, Sven Vath atravessou gerações, épocas e tendências sem sair do escuro. Sob o pseudónimo OFF, editou o single “Electrica Salsa”, fez parte do movimento EBM (não confundir com EDM), experimentou o trance, deixou-se contaminar pelo house e tech-house mas nunca perdeu o centro de gravidade. E esse tem um nome próprio: Sven Vath é uma entidade e uma fundação sem género.

De corpo inteiro 

Amp Fiddler foi cúmplice musical de Prince, George Clinton, J Dilla, Moodymann, Omar S e Sly & Robbie antes de se assumir em nome próprio no princípio de século. Deu então voz a um imaginário sonoro construído sobre sofisticação funk, das mais sólidas fundações dos Parliament/Funkadelic até à descoberta e exploração sonora com sintetizadores já na década de 80. Se Dâm-Funk seguiu o rumo do boogie moderno, maquinalmente elaborado, Amp Fiddler não se fixou numa linguagem. Ou melhor, colou todas as peças num puzzle geográfico que tem Detroit como centro nevrálgico. Da soul ao jazz, da tradição house da cidade, ao funk mandatório, experimentou de tudo um pouco mas foi sempre ele. Amp Fiddler, voz de corpo inteiro, multi-instrumentista de rigor e produtor de visão está de volta após oito anos de separação entre “Inspiration Information” e “Motor City Booty” do ano passado. De volta mas o mesmo.

Vale do Ouro 

Há muito que África está no coração da pop. Por alusão, do samba ao funk, ou convite expresso desde que vozes do ocidente vanguardista como Paul Simon ou David Byrne compreenderam que não fazia qualquer sentido a riqueza musical ser um exclusivo anglo-saxónico. Tony Allen foi diretor musical dos Africa 70, a banda-escola da libertação dos demónios políticos, sociais e sexuais de Fela Kuti, o embaixador universal do afro-beat. Brian Eno chamou-lhe “o maior baterista vivo”. Estudou Max Roach e Art Blakey, dois dos mais transformadores bateristas da história do jazz. A ler e ouvir, apreendeu técnicas como o contratempo e somou-as ao balanço inato. No pós-Fela, Allen descontruiu o afrobeat, arriscando diálogos com a marcha lenta do dub e as múltiplas possibilidades da eletrónica. A cumplicidade com Damon Albarn fê-lo aproximar de audiências mais vastas e agora com 77 anos é, de facto, uma lenda viva.

Mulher independente

Antes do debate feminista também chegar à música eletrónica – meio acusado de ser demasiado patriarcal – já Nina Kraviz era poderosa. Não por ser mulher mas por ser uma DJ de techno de alto nível – quando o corpo quer, o género é indiferente. Por isso, muito mais importante do que ser uma mulher ou um homem a mandar na pista, é ver uma DJ tão apaixonada e sábia a escolher o melhor disco para o momento seguinte. E nisso, a russa radicada em Berlim é exímia. Às muitas capacidades que se lhe reconhecem, soma a idiossincrasia de quem faz porque quer e gosta e não porque precisa. Quem toca assim, tem horas e horas gastas a ouvir discos ou a procurar por eles em lojas especializadas. Sim, Nina Kraviz já deve conhecer Lisboa melhor que muitos portugueses a viver noutras regiões do país mas sempre que regressa, constrói um momento especial inimigo da rotina. Só pode vir do coração.

Homem-máquina

Danilo Plessow nasceu numa cidade rural mas cedo se mudou para Estugarda, a capital da indústria automóvel alemã. Da Motor City teutónica fez a cidade-satélite de Detroit, Motor City americana, sede do rock garageiro de Stooges, MC5 e White Stripes, mas também o primeiro código postal do house. Meio heterónimo é uma homenagem aos dois amores Estugarda e Detroit, ao house e às suas fundações soul, ao jazz e a toda árvore negra. Por isso, a música assinada sob esse nome é tão melódica e harmoniosa. O Drum Ensemble é a explicação técnica para a teoria aplicada à prática. Plessow é um utilizador compulsivo das caixas de ritmos e de algumas das primeiras máquinas a ser usadas naquilo a que universalmente convencionou chamar-se de música eletrónica – que não necessariamente de dança. E quem pensar que da Alemanha podem vir ventos frios e austeridade, vai ter uma surpresa. Das boas.