Antes ainda do aplauso na estreia mundial de The Shape of Water, já falávamos com o mexicano Guillermo Del Toro sobre a sua fábula, digamos assim, bestial. Aqui se conta o romance entre uma empregada de limpeza e um monstro saído de uma espécie de lagoa negra da Amazónia. O projeto de longa gestação dá finalmente sinal de vida. Pelo bruaá, adivinha-se uma carreira de prémios.
Por que demorou tanto tempo a fazer este filme? Porque tinha mesmo de ficar como pretendia?
O filme levou seis anos a fazer, mas para mim foi ainda mais, porque queria fazer um filme de monstros puro. Só que a minha ideia inicial era demasiado ousada e não funcionou. Por isso ficou arquivada. Até que em 2011 estava a tomar o pequeno almoço com o Daniel Kraus, com quem escrevi Trollhunters. Ele disse-me que tinha uma ideia sobre uma empregada de limpeza que trabalhava para o governo e que se apaixonava por um monstro. A minha única exigência era que o filme fosse a cores e não a preto e branco como desejavam inicialmente. Acabei por fazer um filme por 19 milhões mas que parece ter custado 60 milhões.
Parece-me que o sexo é bastante relevante neste filme. Foi algo que também teve de impor ao estúdio?
Existem várias histórias sobre a Bela e o Monstro. O problema é que algumas são demasiado puritanas e não têm sexo, ou então são demasiado perversas. Nenhum desses lados me interessava. Eu queria uma história de amor que tivesse sexo, mas sem entrar pelo território da perversão.
Foi por isso que tornou este monstro tão sensual?
Foi! Mas era importante que a protagonista também não fosse nenhuma princesa imaculada. Esta é uma mulher que se masturba de manhã e coze ovos durante três minutos. Portanto três minutos de masturbação e três minutos de cozedura. Ela é assim metódica, mas pode conservar a sua pureza. Às vezes confunde-se pureza com inocência. Para algumas pessoas, não podemos entrar no território sexual sem perdermos a pureza. Pois eu digo que não só podemos como devemos. Este não é um filme kinky, é bastante doce até.
Até que ponto esta é uma história pessoal, no sentido em que gosta tanto de monstros?
Sim, é pessoal. O ato supremo do amor é podemos mostrar-nos como somos. Você vê-me como sou e eu vejo-o como você é. Isso é o máximo do amor. Os monstros também se apresentam exatamente como são. Mesmo que os verdadeiros monstros usem fato e gravata e bebam cerveja enquanto veem televisão. Para um monstro não há mentira. Por isso os monstros são tão importantes para mim: representam tolerância. São perfeitos elementos para a fábula. Todos estes elementos giravam na minha cabeça enquanto juntava estas ideias.
Quando estava na montagem no filme, o Trump entou para a Casa Branca…
Não, o Trump entrou bem mais cedo [risos]…
Mas achou que esse elemento se tornou ainda mais relevante?
Sim, porque tudo isto esteve sempre presente. Eu sou mexicano! Tenho de passar pela emigração quando entro nos Estados Unidos. Não é nem nunca foi fácil – mesmo durante a administração Obama. É um país que vem de uma Guerra Civil, entre irmãos do Norte e do Sul. E essas feridas nunca sararam. Essa destruição e decomposição do tecido humano tornou-se ainda mais evidente antes de Trump, mas eu tive a consciência de dizer que este é um filme sobre o que se passa agora. Não quis fazer um filme sobre 1962, quis fazer um filme sobre o que se passa hoje.
Porque se passa então o filme em 1962?
O ano de 62 é crucial na América. É o ano em que sonham com o futuro, tudo é futurista, os carros, as cozinhas, os penteados. O Kennedy está na Casa Branca, ainda que vá ser abatido daí a uns meses. Reforçarão ainda mais a sua presença no Vietname. É aí que o sonho acaba. Quando os americanos dizem: ‘let’s make America great again’ estão a pensar em 62. Ao mesmo tempo, os problemas que tivemos em 62, como o racismo e o sexismo, ainda não acabaram.
Como foi articular o equilíbrio entre esta poesia e fantasia, e as cenas brutais que aparecem no filme?
Acho que é mais difícil para o público do que para mim. Tentei controlar um pouco para não se tornar demasiado brutal. Por exemplo, o interrogatório do agente russo foi aliviado, pois era muito mais violento. A verdade é que o bonito e o brutal tem de existir nos meus filmes lado a lado, pois foi assim que descobri a beleza e a brutalidade. É algo muito orgânico.
Ficou satisfeito em poder fazer agora o ‘seu’ filme, sobretudo depois do que sucedeu com o Hobbit, em que acabou por não avançar? Como lidou com esse desaire?
Não consegui lidar. Só me apetecia partir tudo. Foi horrível. Mas isso faz parte do negócio. No entanto, foi uma decisão minha. Por isso, quando me perguntam por que tenho tantos projetos ao mesmo tempo, respondo que é porque a maior parte deles não se concretizam.
O seu fascínio pelos monstros e o seu lado de estarem sempre do lado de fora é algo que vem de ser estrangeiro, de ser um mexicano que vive nos Estados Unidos?
E porque sou doido varrido! Se pensarmos em cinema, faço alguns filmes por um milhão e outros fazem-nos por 96 milhões. Não pertenço a uma categoria. É aqui que posso respirar, porque faço como quero. Poderia ter feito 20 filmes em vez de dez, mas sou demasiado teimoso para deixar de fazer as coisas como quero. É claro que isso não fácil quando se quer arranjar financiamento.
Sentiu-se sempre como um outsider?
Quando era miúdo e vivia no México, pensava no Christopher Lee, no Lon Chaney, no Boris Karloff… Conhecia o Terence Fisher, o James Whale. Sabe com quantas pessoas falava eu sobre isso? Nenhuma! Estava noutro lugar. Essa falta de sincronia que existe nos meus filmes também vem do facto de ser mexicano. A vida e a morte não as vejo como um americano, o mesmo digo sobre a bela e o monstro. Sou completamente mexicano.
Onde acha que The Shape of Water se encaixa na sua obra?
Vinte e cinco anos depois acho que é exatamente um filme meu. É o que posso dizer. Sou uma árvore que dá um certo tipo de fruto. É isso que faço.
Acabei de ver a experiência de realidade virtual aqui em Veneza e gostaria de saber o que pensa sobre isso. É algo que o poderia tentar?
Acho que o filme Carne Y Arena, do Alejandro [Iñárritu] foi algo fantástico. Senti-me como quando os Lumière mostraram o comboio a chegar à estação. É o início de uma linguagem nova. E o início de uma nova proposta de sintaxe. Mas não são filmes. É algo diferente. Ao mesmo tempo, tenho muita curiosidade pela vida em si. O cinema tal como o conhecemos vai mudar completamente nos próximos cinco, dez anos. Do meu lado, quero fazer mais dois ou três filmes desta forma em que vamos ao cinema. Mas isso vai mudar. Lembro-me de ir a São Francisco para ver o filme do Kurosawa num teatro Kabuki. Hoje um filme pode ser descarregado e ser visto onde quer que seja.
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