Lá fora toca, sempre à hora certa, um sino. Como poderia tocar uma sirene. Estremeci mas depressa serenei. Não eram Trindades, como aprendi na minha mimada infância beirã, a anunciar o termo do dia. Era, de verdade, a Missa de alva a renovar o dia sobre a noite. Estremeço com esta disputa indireta, entre a Coreia do Norte e os EUA. Estremeço com as alterações climáticas que ultrapassam barreiras e começam a destruir consciências. Estremeço, em memória viva, com os televisivos debates autárquicos a que assistimos. Com a consciência que em 2013 não se concretizaram em razão de ditas limitações legais e que agora em 2017 se concentram em determinados municípios em razões de naturais opções editoriais. Mas o mais relevante é ter vida. Vida, experiência e referências. O que nos leva, num ápice, à busca de referências. Já que a vida e a experiência são a expressão da proveitosa viagem do e no tempo.
Permitam-me hoje uma memória. Uma verdadeira e profunda travessia de vida. Há bem mais de vinte e cinco anos fui designado membro da Alta Autoridade para a Comunicação Social. Que tinha a expressa competência de analisar as propostas – que eram três – para a atribuição dos canais privados de televisão em Portugal. Guardo para minha memória, e como um dos meus tesouros, o conjunto dos documentos apresentados e, igualmente, as diferentes ponderações que foram feitas. Mas guardo, acima de tudo, a relação com grandes nomes da cultura, da comunicação social, da engenharia e do direito.
Guardo, como exemplo supremo, o sorrido e a profundidade, a sabedoria e a serenidade, a inteligência e a lucidez, a prudência e a consciência da D. Agustina Bessa Luís. E com ela aprendi igualmente o papel da memória. É que, como escreve, «o contador de histórias – peço perdão – não é um romancista. Lembra-se, não constrói, deixa-se arrastar pela memória do amor e surpreender pelos episódios, tão vivos no seu coração, que não pode menos que sublinhá-los conforme a sua própria surpresa».
Um dos grandes livros da D. Agustina – na minha modesta opinião – parte de um crime ocorrido em julho de 1925 na Quinta de São Caetano em Viseu. Conhecido pelo crime do Poço das Feiticeiras. Na história real a D. Silvina conheceu um irmão do meu Avô paterno, Claudino Lopes Ribeiro. E foram viver, com a ousadia que a D. Agustina tão bem retrata, para São Pedro de France, ali bem perto de Viseu. O interessante é que o defensor do crime é um meu bisavô materno, José Marques Loureiro. Escutei várias vezes esta história, sempre com um cuidado extremo, pela voz do querido e saudoso Senhor meu Pai. Recordo que dei conta dela à D. Agustina num dos intervalos daquelas reuniões imensas e intensas que nunca foram objeto nem de estudo aprofundado nem de consequente investigação. E sempre que olho para a minha biblioteca vejo, em lugar de necessário destaque, a primeira edição de Eugénia e Silvina e, acreditem, sinto que toca um sino. Quase escuto uma sirene. A referência ali está. E com ela uma experiência rica de encontros e de partilhas, de conhecimentos e de proximidades. Uma verdadeira travessia de e da vida.