Para os mais acérrimos opositores da legalização da comercialização da canábis, a aprovação inédita, em dezembro de 2013, do novo pacote legislativo uruguaio que regulou o seu cultivo, venda e utilização para fins recreativos no país, foi a forma que o governo encontrou de dar corpo a uma velha máxima popular: “Se não os podes vencer, junta-te a eles”. Afinal, a principal justificação oferecida pelo então presidente para explicar a legalização foi a de querer levar os traficantes de droga à falência, colocando-os a concorrer com o próprio Estado nos seus negócios. “Pior que o vício de drogas é o tráfico de drogas”, repetiu vezes sem conta José Mujica.
Uma análise um pouco mais distanciada ao pioneiro passo dado pelo Uruguai – o primeiro país do mundo a legalizar totalmente a compra e venda de marijuana para fins recreativos – obriga, no entanto, a um entendimento que vai mais além do simples objetivo de refrear o narcotráfico. Ao apropriar-se quase exclusivamente do cultivo e comercialização da planta no país, o Estado uruguaio garante, para além do grosso das receitas de quem pretende consumir canábis para fins recreativos, a entrada privilegiada num dos negócios com maior potencial de crescimento nas próximas décadas, a nível regional e global, particularmente no campo da indústria farmacêutica.
Balançando entre um ou outro argumento, a verdade é que não faltam partidários do gesto uruguaio e, particularmente, partidários da tese que vê numa tomada de posição inovadora, uma enorme responsabilidade. “A legalização resulta de um impulso crescente dos líderes políticos da América Latina em arranjar alternativas na guerra às drogas. [A nova legislação] é importante porque agarra num debate sobre a necessidade de alternativas e oferece-lhe uma proposta real para um problema real”, diz ao “New York Times” Hannah Hetzes, analista da ONG norte-americana Drug Policy Alliance. “A grande responsabilidade que temos no Uruguai é a de mostrar ao mundo que um sistema de liberdade com regulação funciona melhor que a proibição”, acrescenta ao mesmo jornal Eduardo Blasina, fundador do Museu de Canábis de Montevideu.
Do outro lado da barricada estão, por exemplo, comerciantes como Juan José Rodríguez, o dono de uma farmácia na capital do país que se queixa da “facilidade com que as pessoas agora fumam” no Uruguai e que sente o cheiro da planta em cada esquina da cidade. “Depois da marijuana, vamos legalizar a cocaína ou o ecstasy?”, questiona.
Como Rodríguez, outros há que não apoiam a legalização da venda e consumo de marijuana e que, em alguns casos, acabam mesmo por prejudicar quem se envolve na comercialização do produto. Poucas semanas depois da abertura das portas das farmácias aos consumidores de canábis – em julho deste ano – aos bancos uruguaios começaram a chegar cartas oriundas de entidades bancárias norte-americanas, ameaçando cortar relações. Em causa estava o Patriot Act, a legislação norte-americana de resposta aos ataques terroristas do dia 11 de setembro de 2001 que, entre outras resoluções, decretou como ilegal todo e qualquer negócio realizado entre uma instituição financeira dos Estados Unidos e uma entidade envolvida na comercialização de determinadas substâncias ilícitas, como é o caso da marijuana. Assim sendo, um banco uruguaio que esteja implicado em alguma fase do processo de produção ou venda do produto no país corre sérios riscos de vir a ser riscado da lista de amigos de entidades como o todo-poderoso Bank of America.
Modelo uruguaio
Embora tenha sido aprovada no final de 2013, a lei de legalização da canábis demorou algum tempo a ser efetivamente implementada no Uruguai. Num primeiro momento foi autorizado o cultivo da planta para uso estritamente pessoal, consoante o preenchimento de determinados requisitos. Para cidadãos registados, é permitido o cultivo de seis plantas por habitação, sendo que a lei oferece ainda a possibilidade, a um grupo não superior a 45 pessoas, de poder plantar até 99 plantas, desde que, claro está, sejam para uso exclusivo do grupo.
A venda diretamente ao consumidor começou então em meados de julho deste ano e restringe-se a apenas 16 farmácias, que recebem a planta, cultivada embalada e distribuída, por uma de duas companhias cofinanciadas pelo Estado: a Symbiosis e a Iccorp.
Os referidos estabelecimentos estão apenas autorizados a vender o produto aos cidadãos que estejam registados numa base de dados nacional, que utiliza reconhecimento por impressões digitais. Cada consumidor pode comprar um máximo de 10 gramas de cada vez, pelo preço de 374 pesos uruguaios (perto de 11 euros), e não mais do que 40 gramas por mês. À sua disposição tem dois tipos de marijuana: alpha 1 e beta 1.
Para evitar que o Uruguai siga o exemplo de algumas cidades holandesas e se torne num destino de turismo em massa exclusivamente por causa da marijuana, quem se quiser registar tem de ter nacionalidade uruguaia ou, não tendo, tem de apresentar provas de residência permanente no país. Para além disso, a lei apenas aceita o registo de maiores de 18 anos.
Um mês volvido do início da comercialização de marijuana um número superior a 12 mil pessoas constava já dos registos do Estado e não têm sido poucos os casos relatados de farmácias que esgotaram os seus stocks em menos de metade do tempo previsto.
Despreocupado com a má reputação ou com os olhares desconfiados dos vizinhos, o Uruguai quer mostrar ao mundo que a legalização da canábis é o futuro no combate ao narcotráfico. E não está sozinho. Alguns estados norte-americanos já aderiram ao movimento e aumentam cada vez mais as pressões para os países ocidentais embarcarem na mesma aventura. O laboratório uruguaio vai, para já, saltando obstáculos e desbravando mato.
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