Catalunha. A marcha antes da guerra

Centenas de milhares de pessoas marcharam em Barcelona pedindo uma consulta à independência de forma pacífica. Os próximos dias não o vão ser. Madrid prepara uma ofensiva contra o referndo e os independistas não arredam pé. 

A Diada de hoje foi, como se antecipava e vem repetindo há cinco anos, enorme. Foi também a mais ambiciosa. Às portas de um referendo independentista proibido, em risco de não ver a luz do dia e no qual políticos e movimentos apostam a sua sobrevivência, o dia da Catalunha tinha muito sobre os ombros. Desfilaram centenas de milhares de pessoas e os números, como é habitual, são uma guerra em si mesmos. Os mais baixos, como a ninguém deve surpreender, são do governo espanhol, o mesmo que quer travar o referendo no epicentro das reivindicações de ontem em Barcelona: 350 mil, diz Madrid. O “El País”, que contou manifestantes com base na área urbana que ocuparam, aponta para os 500 mil – e o diário espanhol tem ocupado um lugar muito crítico ao referendo. A Guarda Urbana de Barcelona defende que estiveram um milhão de pessoas ontem na cidade. E os organizadores, por fim, mas vagamente, dizem que o número real foi superior. 

Que a Diada foi enorme, não há disputa. Mas a verdadeira incógnita é saber se o foi quanto baste para dar aos impulsionadores do referendo o balão de oxigénio que precisam para a guerra que se avizinha. Se a Diada de ontem foi pacífica, pouco do que se passará em diante o será. Aliás, já não o tem sido. E não foi por acaso que uma das três grandes bandeiras transportadas ontem ao longo das ruas de Barcelona era a pomba branca da paz. No cruzamento entre a rua Aragó e o Paseo de Gràcia estava planeado que as bandeiras se unissem em forma de cruz. A pomba branca, duas com a palavra “sim” inscrita em vários idiomas e uma última, dizendo “Referendo é Democracia”. As bandeiras chegaram desencontradas, a coreografia falhou, mas a mensagem era clara e ouviu-se nos manifestantes: “queremos votar”, “independência”, reclamaram.

Conflito

São duas coisas que podem não acontecer no dia 1 de outubro, a data do referendo à independência que Carles Puigdemont, o presidente da Generalitat, insiste em organizar, ignorando alertas e ameaças das instituições espanholas que se agravaram nos últimos dias e que só vão subir mais de tom. O “El País”, aliás, escrevia ontem que o governo de Mariano Rajoy vai iniciar nos próximos dias uma grande campanha para travar a consulta e que implicará três pilares: a ação de tribunais e instituições que já proibiram o referendo; a ação da polícia para travar confrontos; e, por último, operações de rusga a materiais que possam ser usados para votar. A intervenção da polícia deve começar já hoje e, segundo alguns relatos, atingirá primeiro os domínios na Internet da Generalitat. O cerco judicial já começou há muito e agravou-se na semana passada, quando o Supremo Tribunal da Catalunha aceitou a denúncia da procuradoria regional contra todo o governo de Puigdemont, que acusa de desobediência, desvio de fundos e prevaricação – no limite, são crimes com pena de prisão. “Isso não se vai produzir”, assegurava ontem o presidente da Generalitat, falando de uma detenção no dia da consulta. 

“Não é uma opção para nós que não se concretize o referendo”, garantiu Puigdemont, acrescentando que tem um conjunto de voluntários prontos para conduzir o voto em municípios e freguesias que se recusem a fazê-lo. Os socialistas já prometeram barrar a consulta nas localidades que dominam – algumas nos locais mais populosos da Catalunha -, mas a presidente da câmara da capital catalã pareceu ontem dar um passo tímido na defesa do referendo. Discursando na Diada com a ala mais moderada do movimento independentista – e ao lado de Pablo Escobar, o líder do Podemos -, Ada Colau disse que apoiará a consulta, fará “o possível” para que se realize, mas disse também que a sua “obrigação é respeitar a instituição e os seus trabalhadores públicos”. Colau, todavia, jogou contra as duas faces da moeda. A popular alcaldesa criticou a voracidade do governo espanhol na luta contra o referendo, mas queixou-se também da pressa que o Parlament imprimiu ao processo da consulta, redigindo a legislação que o enquadra quase em segredo e aprovando-a numa sessão caótica, a que deu caráter de urgência para mais facilmente ultrapassar as queixas da oposição. 

Como muitos, Colau vê nisso a mão da CUP, o partido mais radical na coligação de independentistas. “Lições, zero, e muito menos de convergentes que descobriram a desobediência há dois dias”, lançou contra o movimento anticapitalista e antiglobalista, contra a União Europeia, a NATO e o FMI, e que ontem realizou, como Colau e Iglesias, uma ação paralela à mais vasta Diada. A mobilização principal, aliás, já estava a dirigir-se para os 1800 autocarros que vieram de toda a Catalunha quando encapuzados dos movimentos que compõem a CUP queimaram bandeiras da União Europeia, França e Espanha. “Raiva, raiva e raiva”, gritaram os independentistas, com uma audiência que o “La Vanguardia” calculava ser de umas 12 mil pessoas.