Maternidade. Portugal na linha da frente nas “barrigas de aluguer”

Segundo dados de uma ONG suíça nascem todos os anos 20 mil crianças de “barriga de aluguer”. Na Rússia e Ucrânia as mães de aluguer recebem entre 45 a 60 mil euros. Em Portugal, as mães de substituição não podem receber dinheiro em troca e a legislação só o permite em casos de doença

Sexta-feira foi um dia histórico para a vida de muitos casais em Portugal: o primeiro requerimento de gestação de substituição foi aprovado. Maria, 50 anos, poderá vir a ser a gestante do futuro filho da sua filha de 30 anos, Isabel – que não consegue conceber uma criança porque não tem útero.

O caso de Isabel e Miguel faz lembrar o de Cristiano Ronaldo, que por duas vezes recorreu à gestação de substituição. Foi através desse procedimento que o jogador de futebol português se tornou pai de três crianças mas, caso quisesse, Ronaldo não podia ter recorrido ao procedimento em Portugal, visto não se enquadrar nos critérios rígidos que, por cá, o regem.

Por isso, foi nos Estados Unidos da América – onde a legislação é menos restritiva e o procedimento é feito a troco de somas avultadas, falando-se em 120 mil euros para casais não conhecidos do grande público, imagine-se o que terá pago o craque português… –, que Ronaldo encontrou condições para ser pai através de duas barrigas de aluguer, que continuam anónimas.

O primeiro caso aprovado

“Só tremo. Estou a rebentar num turbilhão de emoções. Nem consigo descrever”. Foi assim que Isabel reagiu, em declarações ao jornal “Expresso”, ao conhecer a decisão do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA), o órgão ao qual compete analisar os requerimentos, aprovando-os ou rejeitando-os. O companheiro, Miguel, também foi de poucas palavras: “Para os sonhos e para o amor não há impossíveis”, disse ao mesmo jornal.

O casal submeteu o pedido a sete de agosto. Na base estava o facto de Isabel não ter útero por ter sofrido uma endometriose profunda, doença que afeta o sistema reprodutor feminino e que a terá obrigado a tirar o útero – o culminar de um processo que envolveu mais de 10 operações. Isabel e Miguel vão agora esperar pelo parecer – não vinculativo – da Ordem dos Médicos, que pode emiti-lo no prazo máximo de 60 dias. O caso volta depois a ser analisado pelo CNPMA, que dará a decisão final.

Apesar dos problemas de saúde, a vontade de Isabel e Miguel serem pais falou mais forte e levou a futura mãe a submeter-se a vários tratamentos de fertilidade que, como o tempo mostraria, não foram solução. Sensibilizada com a situação da filha e do genro, Maria disse que carregaria o futuro neto – os pais, prevê o decreto, são os beneficiários da gestação de substituição – no seu próprio útero.

Outros casos

Neste momento, para além do requerimento de Isabel e Miguel entretanto aprovado, existem 52 pedidos de casais com intenção de recorrer ao procedimento. Segundo dados avançados pelo “Expresso”, 44 casais submeteram o pedido antes de a lei entrar em vigor, a um de agosto. Os restantes fizeram-no depois dessa data.

Entre os pedidos, há 13 de casais estrangeiros, a maioria espanhóis – em Espanha, o procedimento é proibido e calcula-se que mil casais espanhóis já tenham recorrido a barrigas de aluguer no estrangeiros, segundo dados de uma ONG suíça. Isto porque em Portugal a lei não faz restrições quanto à nacionalidade dos intervenientes: beneficiários e gestante podem ser estrangeiros.

Regras portuguesas

Por cá, como enuncia o decreto que entrou em vigor no início de agosto deste ano, o procedimento é exclusivo para casos em que haja doença da mulher beneficiária: estão visados os “casos de ausência de útero e de lesão ou doença deste órgão que impeça de forma absoluta e definitiva a gravidez da mulher” e “situações clínicas que o justifiquem”. De fora ficam, portanto, os casais de homens homossexuais, que não podem recorrer a este procedimento ou de homens heterossexuais que queiram ser pais recorrendo às tais barrigas de aluguer.

Além disso, a gestante – que vai oferecer o seu corpo para gerar a futura criança – tem de ter dado à luz pelo menos um filho com vida e não pode ter estado envolvida num procedimento deste tipo no passado. Não é, também, permitido haver dinheiro em troca – apenas para as despesas médicas –, motivo pelo qual, aliás, é incorreto usar a designação “barriga de aluguer” em Portugal.

Cumpridos os requisitos, os interessados têm de preencher formulário próprio no site do CNPMA, e apresentar uma autorização de um psicólogo ou psiquiatra e do diretor do centro de Procriação Medicamente Assistida (PMA), escolhido pelo casal.

Segue-se, depois, uma espera que pode chegar até 60 dias e durante os quais o CNPMA delibera a aprovação ou não do pedido. Caso seja aprovado, os requerentes podem esperar novamente até 60 dias pelo parecer não vinculativo da Ordem dos Médicos.

Mas o processo não termina aqui: emitido esse parecer, o casal enfrenta uma vez mais um período máximo de 60 dias para conhecer a decisão final do CNPMA. Para chegar a tal decisão, como o decreto faz saber, o CNPMA “deve tomar as diligências que considere adequadas e necessárias para a decisão”, como a “realização de uma reunião com a gestante de substituição e o casal beneficiário, e a realização de uma avaliação completa e independente do casal beneficiário e da gestante de substituição, por uma equipa técnica e multidisciplinar designadamente na área da saúde materna e da saúde mental”.

Aprovado o pedido, é por fim formalizado o contrato, que inclui as obrigações e os direitos dos beneficiários e da gestante. Caso o feto apresente malformações, é a grávida quem decide se mantém ou não a gravidez. O decreto acrescenta ainda que a sua relação com a criança deve estar reduzida “ao mínimo indispensável, pelos potenciais riscos psicológicos e afetivos que essa relação comporta”.

Recorde-se que a versão final da lei de gestação de substituição foi aprovada em julho de 2016, mas foi só este ano, a um de agosto, que o procedimento se tornou possível, uma vez que estava em falta regulamentação por parte do Ministério da Saúde. Este foi um processo legislativo particularmente polémico: a lei, inicialmente aprovada no parlamento em maio de 2016, viria a ser alvo do primeiro veto de Marcelo Rebelo de Sousa em junho do mesmo ano.

A gestação de substituição lá fora

Foi nos Estados Unidos da América, em 1985, que aconteceu o primeiro caso de gestação por substituição. Desde aí a prática massificou-se e é hoje muito comum. Estados há, contudo, onde continua a ser ilegal.

Na Europa, a Grécia, o Reino Unido, a Ucrânia e Rússia – nestes dois últimos países as mulheres que “dão” a barriga de aluguer cobram entre 45 e 60 mil euros – permitem a gestação de substituição. Cada país à sua maneira, com os seus próprios critérios. Já na Bélgica como há um vazio legal, não é legal nem ilegal…

Na Alemanha, França, Espanha, Itália e Suíça a gestação de substituição é proibida. Por seu lado, a Índia que era um paraíso para os casais homossexuais americanos que recorriam a barrigas de aluguer proibiu recentemente essa prática a todos os estrangeiros, seguindo o exemplo da Tailândia que já o tinha feito em 2015.

Recorde-se que segundo a ONG suíça International Social Security todos os anos nascem 20 mil crianças de barrigas de aluguer.

Casos conhecidos

Além de Cristiano Ronaldo, são várias as caras conhecidas que já recorreram à gestação de substituição para terem filhos. O casal Sarah Jessica Parker e Matthew Broderick, Nicole Kidman e Keith Urban ou Neil Patrick Harris e o seu companheiro David Burtka são alguns dos exemplos.

Mais recentemente, em junho deste ano, surgiram rumores quanto a um eventual recurso a uma barriga de aluguer por Kim Kardashian West e Kanye West. O casal não confirmou nem desmentiu as notícias que surgiram em vários órgãos de comunicação social, segundo as quais Kim não pode ter um terceiro filho devido a doença, e que relatam que o casal terá pago uma pequena fortuna a uma barriga de aluguer.

*Texto editado por Vítor Rainho