Chega-se à sala de ensaios onde Marco Rodrigues prepara o concerto de sábado no festival fadista Caixa Alfama que fará encher o “Copo Meio Cheio”, servido no dia anterior, e tudo parece o oposto das convenções do fado.
Vestido de ganga, em calções e camisa, despe-se a solenidade do fado no campo de treinos dos músicos. Sentado, de computador portátil de marca-maçã ao colo, o convidado Boss AC vai fixando as letras. Ele, o rapper que mais perto esteve de levar o rap a uma família ‘trigeracional’ de avós, pais e netos.
A história não começa e acaba aqui. Os dois reconstroem…”Sexta-Feira”. É? “Yeahhhhhhhh”. “É seeeextaaaaa-feeeeeiraaaaaaa”, canta afadistado Marco Rodrigues. Na cadeira, Boss AC assume o papel de maestro, ou não conhecesse aquela canção como progenitor. “Já se fizeram tantas versões. A última do Panda e os Caricas. Só faltava mesmo um fado. E calha mesmo bem”, há-de contar mais tarde, frente-a-frente à mesa com Marco Rodrigues.
Há pelo menos dois motivos para visitarmos os aposentos de Marco Rodrigues, músicos de suporte e Boss AC. Esta sexta-feira é editado “Copo Meio Cheio”, o quarto tomo de um crescer sem repente. Na noite seguinte, o álbum será apresentado à família fadista e aos muitos curiosos que reconhecem nesta música essa coisa da alma que se explica pelos versos e pelas palavras que os poetas arrancaram de dentro para fora e tiraram à vida para dar à canção.
Não é um álbum qualquer. Marco Rodrigues convocou Boss AC e um extenso rol de outros nomes afamados, entre os quais gente com fundações no hip-hop como Carlão e Capicua; Agir, Diogo Piçarra, Luísa Sobral, Pedro da Silva Martins e Luís José Martins (Deolinda), os Amor Electro e os Átoa. Gente de todos os quadrantes…menos do fado para um álbum que, parecendo que sim, não é um desfado. “Eu não estou a sair de lado nenhum. Não estou a abandonar nada. São quatro álbuns, assumidamente de fado. O último é assumidamente de clássicos de vozes masculinas. Eu nunca deixaria o fado de fora mas também não consigo dizer que este é um disco de fado. Não, não é, mas não consigo descolar dele”, descreve. “Há muitos anos, a Amália Rodrigues foi chacinada por trazer Fernando Pessoa e Luís de Camões porque se dizia que só poetas populares ou do bairro é que podiam escrever fado”, compara. “Copo Meio Cheio” até tem três fados tradicionais mas tal como outros seus pares fizeram, convoca uma série de compositores com afinidade pop para um disco que é como uma coleção de curtas-metragens imaginadas por diferentes realizadores para um só protagonista a passar por um momento particular da vida pessoal.
Podia haver furacões, tsunamis ou um novo 1755 que este Marco Rodrigues ia ser sempre o pai de uma criança de 18 meses. “Estou a passar pelo melhor e mais feliz momento da minha vida”, confirma com o sorriso de quem vive pela primeira vez a alegria da paternidade. As canções retratam-no.
É o copo meio cheio, feliz e otimista. Quase indiferente às dores do mundo. “Podia ser o copo cheio”, reconhece Marco Rodrigues. “A transbordar”, reforça. “Não Podia Estar Melhor”, o cartão de visita para efeitos de posto de escuta, escrita por Boss AC, fala n’”A Vida é Bela”. A de Roberto Benigni? “Esse filme é um dos meus favoritos”, reconhece o autor. “Para mim não foi difícil. Sempre convivi com o fado. Sou da Bica e do Cais do Sodré“, recorda Boss AC. “Uma das coisas que pedi ao Marco e ele não acedeu foi assinar como Boss AC porque ainda há algum preconceito e, a bem ou a mal, as pessoas levam uma ideia preconcebida sobre mim, e eu queria que ouvissem livremente.” AC, ou Ângelo Firmino, filho da cantora cabo-verdiana Ana Firmino, refere-se ao “Homem da Saldanha” – também conhecido como o (já falecido) Senhor do Adeus – primeira de uma sociedade agora ampliada. “Em equipa que ganha não se mexe. Fiz questão que fosse ele a escrever sobre este momento porque estou a passar”, vinca
Não é caso único. Pedro da Silva Martins (o compositor principal dos Deolinda) escreveu sobre o “desfado da paternidade”, isto é o lado pegajoso e menos higiénico de ser pai. “Encontrei-o num jantar e perguntei-lhe pela canção que tinha ficado de ser entregue. Ele disse-me que estava atrasado e eu dei-lhe o mote: “olha, eu fui pai mas não quero que escrevas sobre o amor incondicional. Isso já está feito (e muito bem por algumas pessoas. Quero que escrevas sobre as mudanças na vida”.
Então saiu uma canção sobre fraldas, baba e ranho. “[O meu filho] é o único ser que me pode acordar a qualquer hora da noite”, usa Marco Rodrigues para retratar o momento de glória pessoal por que passa. “Só assim que vale a pena fazer as coisas. Com felicidade para andar a frente”, declara esperançado.
Na sala de ensaios, o mercúrio sobe. A “Sexta-Feira”, de Boss AC, está ensaiada. Segue-se “O Homem do Saldanha”, uma das canções que deu bom nome às “Tantas Lisboas” de Marco Rodrigues. De telemóvel na mão, AC vai reavivando a letra. “Isso está muito bem cantadinho”, ouve-se. O elogio parte do fadista para o rapper. E nascem as brincadeiras. “AC, o manda-fado”, gera gargalhada. Marco Rodrigues graceja ao arriscar um linguajar rappado.
No final da canção, a “Lisboa Sorri” é adaptada para uma “Alfama Sorri”, mais económica na sua extensão vocal para que os dois possam rescrever deste e de outros fados. “Não é adeus, é olá que diz”.