A Turquia vai mesmo comprar o mais sofisticado sistema de mísseis terra-ar no mundo e já pagou uma das remessas. O presidente turco anunciou-o na terça-feira, garantiu nesse mesmo dia que o que está feito, está feito, e explicou que os mesmos “amigos” que lhe vão vender o material de guerra vão também fiar o que resta dos 2500 milhões de dólares que custa. E ao anunciar tudo isto, Recep Tayyip Erdogan explicou também que os seus outros amigos no Ocidente nada têm a ver com os assuntos de segurança turcos, mesmo que o país seja da NATO e que o caro e avançado sistema de mísseis em causa venha da Rússia, o suposto grande inimigo hipotético.
De uma assentada, o líder turco enerva os parceiros europeus e americanos, dá uma vitória financeira e diplomática a Moscovo e prossegue o caminho iniciado há pouco mais de um ano, quando decidiu voltar as costas aos aliados tradicionais e estender a mão a inimigos históricos. “Ficaram loucos porque fizemos o acordo dos S-400”, disse ontem Erdogan, em Ancara, no segundo discurso em dois dias lançado contra os parceiros da aliança transatlântica. “O que é que estavam à espera que fizéssemos? Esperar por vocês? Estamos a tomar e tomaremos todas as medidas na frente securitária.”
A compra não é uma inteira novidade. A Turquia já a anunciara e em 2013 já havia estudado a compra de um outro sistema antiaéreo a construtoras chinesas, o que também era mal visto pelos parceiros da NATO. Tanto assim era que o negócio não avançou por pressão dos Estados Unidos, de acordo com o “New York Times”. Desta vez, a situação é muito diferente. Governo e presidente turcos estão de costas voltadas para os parceiros da NATO. Erdogan acredita que Washington teve alguma coisa a ver com a tentativa de golpe de Estado de julho do ano passado e Bruxelas não cessa de criticar a sua deriva autoritária. Tanto assim é que vários países deixaram de vender armamento à Turquia. A Alemanha anunciou-o – provavelmente não por coincidência – um dia antes de Erdogan revelar a compra dos S-400, dizendo que avalia cada venda caso a caso e que este ano o valor de exportações para Ancara caiu dos 80 milhões de euros para poucas centenas de milhares. Os Estados Unidos, por sua vez, retiraram grande parte dos seus próprios sistemas antiaéreos Patriot do território turco e recusaram vender drones a Erdogan.
Oscilação
Erdogan tem razão num aspeto: para comprar armas, o presidente turco tem por estes dias que virar-se para países fora da NATO. Fazê-lo com a Rússia, no entanto, cria vários receios. Segundo escrevia ontem a Fundação Jamestown – um think tank conservador americano – os parceiros ocidentais receiam que instalar o sistema S-400 permita de alguma forma à Rússia controlá-lo – e ao seu poderoso radar – à distância, recolhendo informações sobre o sistema partilhado antimíssil ou, então, procurando formas de o atacar. A NATO_queixa-se também que o sistema não é compatível com a sua rede antimíssil, mas a Turquia defende-se dizendo que a Grécia também tem um sistema antiaéreo russo, o S-300. O sistema, em todo o caso, foi comprado por_Chipre durante a Guerra Fria e só por pressão turca acabou em mãos gregas. E a própria NATO preocupa-se também com os reforçados laços entre Moscovo e Atenas, que, como com o governo turco, começam a verter para o domínio militar. E o mais espinhoso pode estar por vir: os congressistas americanos suspenderam as vendas do novo F-35, citando preocupações com a purga a jornalistas e funcionários públicos na Turquia e as agressões dos guarda-costas de Erdogan a manifestantes na sua visita aos Estados Unidos. Também neste caso, Ancara pode ver-se tentada a comprar aviões noutro lado.
A reorientação diplomática turca é alucinante e pode revelar uma intenção a prazo. Erdogan pode até identificar-se com o modelo iliberal russo, mas, mais do que isso, o presidente turco interessa-se com o que se passa a sul da fronteira, no norte da Síria, onde uma guerrilha bem organizada de combatentes curdos se estende quase a toda a linha até ao Iraque, com aspirações de autodeterminação no pós-guerra. Os EUA ignoram os pedidos de Ancara e continuam a financiar os curdos sírios das YPG, que têm provado ser os melhores combatentes satélite contra o autoproclamado Estado Islâmico e, numa aliança com militantes sunitas, aproximam-se por estes dias da suposta capital do califado, Raqqa. Para o governo turco, no entanto, a equação é simples: as YPG têm ligações aos separatistas do Partido dos Trabalhadores do Curdistão, o PKK, e as suas aspirações sírias podem ser o suficiente para os impulsionar no leste turco. A Rússia e o Irão, ambos antigos rivais turcos com muita influência sobre o governo sírio de Bashar al-Assad, são essenciais para moldar os destinos da Síria no pós-guerra e, por conseguinte, dos curdos que lá vivem e combatem. E em Moscovo e Teerão, só há a ganhar com o novo amigo turco: os russos reavivaram um canal de abastecimento de gás e a construção conjunta de uma central nuclear; e os iranianos têm via aberta para cimentar a já grande influência na Síria e Iraque. Os curdos, porém, podem não baixar armas sem uma guerra. E Washington, pelo menos por enquanto, está do seu lado.