16 de janeiro de 2016. Após um hiato de mais de dois anos sem agenda, editorial ou de palco, os Orelha Negra voltam à carga para apresentar o “novo álbum”. O terceiro.
É início de ano e a fórmula repete-se. Quatro anos antes, o coletivo apresentava aquilo que seria o segundo volume. Em janeiro, mas o álbum só chegaria em março. Agora é 2016. O tempo passa. Os concertos somam-se. “A Sombra” é o cartão de visita. Em vésperas de uma noite memorável no Super Bock Super Rock, encabeçada por Kendrick Lamar, é estreado “Parte de Mim”. Ace (Mind Da Gap) e Boss AC participam no vídeo. Rappam mas só se escutam as falas instrumentais dos Orelha Negra. “Gritos mudos chamando a atenção”, escreveu um dia Tim para os Xutos & Pontapés.
“O álbum demorou porque não estivemos todos os dias em estúdio. Fomos fazendo aos poucos”, conta o baterista Fred. “No concerto do CCB, as canções já estavam estruturadas. Não estavam era no ponto de pós-produção que pretendíamos”, complementa o baixista Francisco Rebelo. “Isso também tem a ver com a nossa vida profissional como músicos”, continua. “Até nos faz bem”, sublinha Fred.
De facto, os Orelha Negra são “muito importantes”, concordam os cinco, mas não têm exclusividade. Fred é o patrono dos estúdios Kambas e, entre outras sociedades, foi decisivo para fazer de Slow J a revelação nacional do ano, Francisco Rebelo e João Gomes viajam entre o funk do Cais Sodré Funk Connection e o funaná do Fogo-Fogo – o teclista ainda faz parte da banda de Ana Moura; Sam The Kid, enquanto não dá à luz nem a sequela de “Beats Vol. 1”, nem os álbuns com Mundo Segundo ou Beware Jack, criou o canal próprio, a TV Chelas, onde tem vindo a dar conhecer material de arquivo e a conversar com outros embaixadores do hip-hop, além de ser um dos interlocutores do podcast 3 Pancadas; e Cruzfader é um dos DJ mais requisitados da praça.
“O facto de não termos um produtor de fora pode ter feito com que o processo se arrastasse”, reconhece João Gomes. “Tentamos ouvir a opinião de toda a gente. Não tomar decisões unilaterais. Isso torna o consenso mais difícil”, admite. Os Orelha Negra são então uma democracia a cinco votos à qual é necessário impor para prazos. “Os nossos deadlines são os concertos. Podemos recuar ao nosso primeiro concerto no Musicbox [2008]. Fomos obrigados a criar repertório para aí. E o álbum só foi apresentado muito tempo depois [dois anos]”, defende Sam The Kid.
“Nós convidámos as pessoas a ouvir as canções. Não dissemos que o álbum ia sair. Há tantas formas hoje de divulgação. Isso até torna o processo interessante. Porque é que não pode ser assim?”, interroga o rapper de quem se espera um longa-duração há bem mais do que os 608 dias entre 16 de janeiro de 2016 e 15 de setembro de 2017, amanhã, dia em que o terceiro capítulo dos Orelha Negra chegará do espaço e aterrará na terra.
“Logo no CCB, percebemos que o disco ia tomar um caminho diferente dos outros”, descreve Fred. “A seguir ao concerto, houve uma pesquisa gigante de vozes e samples. Esse foi o grande upgrade. Estruturalmente”. O resultado é mais complexo, concorda a banda. “Tivemos mais tempo para as encaixar e torná-las mais ricas. Não nos quisemos repetir. Faz parte da nossa natureza como músicos”, salienta João Gomes. “Ele também foi complexo a compor. Quisemos ser mais exigentes. Experimentar coisas que não tínhamos tentado”, reforça Francisco Rebelo.
Entre o segundo mundo e este terceiro planeta, a atmosfera não ficou destituída de acontecimentos. Na segunda mixtape, a primeira oficializada em álbum, foram convidadas uma série de vozes do hip-hop nacional e não só. O gesto ambicioso deu origem a um concerto único com gente como Regula, Carlão e Valete que funcionou quase como uma história do hip-hop português em que os Orelha Negra não só olharam para o seu repertório como serviram de banda de suporte. Ainda assim, quando surge a pergunta se esse romance alguma vez esteve em risco de se transformar num compromisso sólido, a resposta surge quase em uníssono. “Não”.
Uma terceira mixtape fará parte do novo ciclo mas “a base de funcionamento é a mesma”, assegura Francisco Rebelo. “Já nos conhecemos. Já sabemos como nos estimular mas gostamos de nos surpreender. Quisemos ir mais longe. Sempre que alguma coisa soava a algo já feito, arrumávamos na prateleira”, aprofunda. “Tínhamos o desafio de não nos repetirmos”, confirma Sam The Kid. “Sendo instrumental, temos liberdade para experimentar. A coisa nem sempre é linear mas flui”, enfatiza João Gomes.
Amanhã pelas 00h10 no Festival Iminente, satélites como “Apolo 70” e “Skylab” estarão em órbita. “O álbum tem uma lógica meio cósmica, desde a capa, aos títulos, e é uma homenagem a isso. Chegámos a pensar dar só nomes de centros comerciais e cinemas decadentes”, diz. Modernizar o passado é uma evolução musical. É hora de voltar ao futurismo.