Madrid está a dar tudo por tudo para impedir a realização do referendo catalão no próximo dia 1 de outubro. Centenas de guardas civis estão a ser deslocados de fora para o território. Alguns desses elementos policiais estão a fazer buscas em tipografias para apreender os boletins de voto e os cadernos eleitorais. Os tribunais da capital espanhola ameaçaram com prisão todos os eleitos das autarquias locais que disponibilizem instalações para assembleias de votos. O Governo espanhol, dirigido por Mariano Rajoy, fala de uma resposta proporcional ao desafio independentista, mas garante que fará tudo para impedir que a população da Catalunha possa pronunciar-se sobre se quer continuar ligada a Espanha ou ser independente. Essas medidas podem passar por colocar as forças policiais locais, os Moços de Esquadra, sob o comando do Ministério do Interior Espanhol, ou até fazer apelo ao artigo 155 da Constituição de Espanha que prevê a suspensão das instituições democráticas, como o Parlamento catalão e o Governo autónomo, e a sua substituição por pessoas nomeadas por Madrid.
Essa força bruta tem todas as condições para impedir que no dia 1 de outubro haja um referendo generalizado e pacífico, em que a maioria dos eleitores catalães possa pronunciar-se.
Como é óbvio, os independentistas há muito que previam este cenário. A escalada de repressão de Madrid tem-lhes servido às mil maravilhas, desde o veto, pelo Tribunal Constitucional, do novo Estatuto da Catalunha, que foi aprovado pelo parlamento local, modificado pelo Parlamento nacional em Madrid e posteriormente referendado pela população catalã.
Há menos de 15 anos, o número de pessoas que defendiam a independência da Catalunha era, segundo alguns estudos, inferior a 20% dos eleitores locais; hoje, este número é quase metade das pessoas residentes no território e quase 80% dos catalães são favoráveis ao chamado ‘direito dos catalães decidirem o seu futuro’. Recorde-se que A lei fundamental de Espanha prevê no seu artigo oitavo que «as forças armadas, constituídas pelo exército de terra, a armada e a força aérea, têm como missão garantir a soberania e independência de Espanha e defender a sua integridade territorial». O líder do Governo afiançou que sempre viu a política como exercício de «moderação e diálogo de todos os povos de Espanha», mas entende que os independentistas «ultrapassaram todas as linhas vermelhas» e que ele e o seu Executivo usarão todos os meios ao dispor para os deter.
Entre os cenários possíveis, em cima da mesa estão duas medidas prévias a uma ocupação militar: uma lei recentemente aprovada que permite a centralização no Governo de Madrid de todas as forças policiais, inclusive as polícias das comunidades autónomas, como os Moços de Esquadra, e a dissolução, pura e simples, das instituições autónomas, como o Governo e o Parlamento da Catalunha.
O Governo de Madrid afirmou a semana passada que pode retirar os poderes ao governo catalão. O ministro da Educação e porta-voz do Executivo, Íñigo Méndez de Vigo, confirmou que o Governo não descarta fazer apelo do artigo 155 da Constituição que lhe permitiria suspender as instituições autónomas da Catalunha, de modo a que não pudesse realizar-se o referendo previsto para 1 de outubro.
Méndez de Vigo alertou que quando o presidente do Governo, Mariano Rajoy, dizia que «não renuncia [a fazer nada], é que não renuncia mesmo a fazer nada», incluindo a suspensão das instituições democráticas da Catalunha.
O artigo 155 da Constituição permite ao Governo central assumir as competências das instituições eleitas autónomas quando «uma Comunidade Autónoma não cumpra as obrigações que a Constituição e outras leis impõem, ou quando atue de forma que atenta gravemente contra o interesse geral de Espanha».
«O Governo manifestou que as medidas que vai tomar são proporcionais e no interesse de todos os cidadãos e, em especial, dos catalães. O Governo tomará as medidas que terá de tomar, quando as tiver que tomar», declarou o porta-voz do Governo de Madrid.
Em carta publicada no influente Financial Times, o presidente do Governo catalão Carles Puigdemont, a presidente da Câmara de Barcelona, Ada Colau, o vice-presidente catalão Oriol Junquera e a presidente do Parlamento, Carme Forcadell pedem ao presidente do Governo de Madrid, Mariano Rajoy, e ao Rei que desbloqueiem as vias de negociação entre as várias partes, de modo a que seja possível uma solução política para o conflito. A missiva reafirma o direito dos catalães a decidir se querem permanecer ou sair de Espanha e denuncia o que chama «uma ofensiva de repressão sem precedentes» contra o povo catalão, os seus representantes eleitos democraticamente e o Governo e Parlamento da Catalunha.
A missiva é significativa porque faz somar à vontade dos independentistas os setores próximos do Podemos, de Ada Colau, que, não sendo parte deles independentistas, sempre defenderam o direito dos catalães a decidirem o seu futuro.
Em 11 de setembro assinalou-se a Dia da Catalunha. A data, em vez de comemorar uma vitória, homenageia os caídos numa derrota. Um amigo meu catalão costumava contar-me uma história sobre a origem da bandeira catalã, a ‘Señera’: no meio de uma batalha, o Rei ofereceu ao conde catalão um escudo dourado, que pintou com sangue passando a mão pela superfície. A história pode ser falsa, mas tem uma moral que explica muita coisa. Como todas as lendas, demonstra que as identidades constroem-se muitas vezes mais do sofrimento e dos agravos do que das vitórias. Em 11 de setembro de 1714, Barcelona caiu às mãos das tropas borbónicas e os catalães perderam os seus direitos. A 11 de setembro de 2017, centenas de milhares de catalães encheram as ruas de Barcelona a reclamar independência a poucas semanas de um referendo que não vai acontecer, mas que pode ser uma vitória demasiado amarga para o Governo de Madrid.