Numa entrevista recente à BBC, António Guterres, havia catalogado o ansiado discurso desta terça-feira da líder de facto do Myanmar como a sua “última oportunidade” para pôr fim a uma crise humanitária que, no espaço de pouco mais de três semanas, levou 420 mil rohingyas a fugir para o vizinho Bangladesh. Tendo em conta o teor da exposição oral de Aung San Suu Kyi, é bastante improvável que o secretário-geral das Nações Unidas esteja neste momento a pensar que a Nobel da Paz de 1991 aproveitou o momento para virar o rumo dos acontecimentos.
Num discurso altamente ambíguo e pouco comprometido, Suu Kyi apresentou uma visão do seu país que pouco ou nada corresponde com os testemunhos dos fugitivos, membros de organizações não-governamentais e elementos do governo bangladechiano, e com as imagens de satélite reveladas a um ritmo quase diário, que confirmam a destruição de aldeias e o êxodo massivo de uma minoria muçulmana perseguida há décadas do país – e que a ONU diz estar a ser alvo de uma verdadeira “limpeza étnica”.
Os rohingya viram-se novamente envolvidos no centro de um furacão no final do mês de agosto, depois de os rebeldes do Exército de Salvação dos Rohingya de Arracão (ARSA, na sigla em inglês), terem atacado instalações policiais e matado 12 agentes, no estado de Rakhine – onde em 2015 se calculava que residiam cerca de 1,1 milhões de rohingya. Sob o pretexto de estar a combater contra os “terroristas” do ARSA, o exército birmanês desencadeou uma retaliação militar brutal contra a população civil daquela minoria islâmica, numa estratégia assente no saque e destruição de aldeias inteiras – 214 desde o início da campanha, segundo a Human Rights Watch –, em deportações em massa e até na instalação de minas terrestres na fronteira com o Bangladesh, para impedir a sua fuga.
No seu discurso, Suu Kyi assegurou que o governo “tomará medidas contra os responsáveis pela violação de direitos humanos” no Myanmar, mas defendeu que a existência de “alegações e contra-alegações” não oferece uma base sólida para o governo “perceber quais são os verdadeiros problemas” que levaram à fuga de 420 mil pessoas do país, onde se incluem, segundo as estimativas da ONU, cerca de 250 mil crianças.
A líder birmanesa garantiu ainda que todas as operações de segurança “foram concluídas a 5 de setembro” e “cumpriram rigorosamente o código de conduta”, e argumentou que o facto de “50% da população muçulmana bengali” – nunca utilizou a denominação “rohingya” durante o discurso – ainda estar “intacta” no país, revela que a crise não é tão grave como a comunidade internacional sugere.
“Reconheço que as atenções do mundo estão focadas na situação do estado de Rakhine e enquanto membro responsável da comunidade de nações, [mas] o Myanmar não teme o escrutínio internacional”, afiançou Suu Kyi, sem explicar, no entanto, porque não é permitida a entrada de observadores e investigadores da ONU no país.
O discurso da Nobel da Paz gerou uma enorme onda de críticas juntas de ONGs de direitos humanos, com a Amnistia Internacional à cabeça. Num comunicado partilhado no seu site, a organização acusou a liderança birmanesa de estar a “enterrar a cabeça na areia” e a desprezar os “horrores” testemunhados no estado de Rakhine, e descreveu as palavras de Aung San Suu Kyi à nação como uma “mistura de mentiras e vitimização”.