Clarice Falcão. “Na música, o meu objetivo não é fazer rir”

É pela gargalhada que a conhecemos. Mas a Clarice Falcão que voltará a Lisboa e irá ao Porto é a cantora de temas sérios como o feminismo

Rir para não chorar, diz a canção. Rir para consciencializar, defende Clarice Falcão. Popularizada pela trupe do humor Porta dos Fundos, conquistou a inveja das mulheres heterossexuais ao casar com Gregório Duvidier. Separou-se. Do ator. Fechou. A Porta. Que não a primeira janela porque tudo começara na Internet quando ganhou o primeiro lugar no concurso planetário de curtas metragens da Google, denominado Project Direct, promovido pelo YouTube. O filme foi exibido no Festival Sundance e valeu-lhe um convite para a Globo, mas Clarice Falcão não se deu bem com o sistema institucional. Hoje esse mundo e o outro estão de pernas para o ar. No Brasil, a credibilidade política está pelas ruas da amargura. O povo está descontente. E Clarice Falcão concorda que o humor pode ser a mais poderosa de todas as armas que não matam. De regresso a Portugal dentro de dias, o espetáculo será outro: musical. Em carteira, dois álbuns sobre o que é isso de ser mulher independente e afirmativa.

A Clarice Falcão cantora é mais séria do que a humorista? É isso que as separa?

É mais séria, sim. [Na música] o meu objetivo não é fazer rir. Sempre gostei de comunicar através do humor, mas entrei na Porta dos Fundos por causa das músicas. Acredito que fui chamada por terem visto algum sentido de humor nas canções.

O que é que lhe dá mais gozo?

Gosto de misturar as coisas. Se faço a mesma coisa durante muito tempo, aborreço-me. Já quis ser atriz, escritora, compositora, argumentista…Hoje em dia vou fazendo. Sinto-me livre.

Onde é que a música e o humor se encontram? 

Acima de tudo, gosto muito de contar histórias. É o que mais me fascina em comunicar. Por isso é que as músicas são narrativas. Acabam por ser cinematográficas.

O gosto pela criação vem do berço?

É muito difícil separar o que somos da forma como fomos criados. Sempre fui fascinada pela criação. Com histórias antes de dormir, com muita música. Mas, por exemplo, a minha irmã é académica. Temos gostos parecidos, ela aprecia mas seguiu outro caminho.

Quando é que a brincadeira passou a ser séria?

Nunca pensei em ser outra coisa. Na verdade, nunca escolhi ser o que sou. Ia fazendo. Se tinha uma ideia, fazia uma curta ou uma música. 

A Internet foi decisiva nesse processo de comunicar sem filtros?

A Internet deu-me a liberdade de não ter que agradar a ninguém. Na Internet, só vê quem quer. Não tens que agradar a quem não te vê. Cheguei a trabalhar na televisão, em ótimos programas da Globo, mas não me dei bem. Não faria de novo. Chamaram-me para um teste por terem visto uma curta que estava no YouTube. 

Em diversas entrevistas, tem contado que deixou de ler comentários na Internet. 

Deixei de ler, sim. Antes lia. Chorava muito. Queria enviar flores às pessoas para explicar que não era assim tão ruim. Depois aprendi a ficar “casca grossa”. Até porque muitos dos comentários são mal intencionados. Não aconteceu só comigo. Conheço várias pessoas que passaram pelo mesmo. Se faço parte dessa engrenagem louca chamada Internet… foi lá que eu comecei mas pode ser um lugar muito cruel.

O humor é a ferramenta social mais poderosa para quebrar barreiras e preconceitos? 

Não sei se é a mais poderosa mas que é uma ferramenta importante é. Há aquela música da Mary Poppins “A spoonful of sugar helps the medicine go down”. O humor envolve um assunto sério numa capa de leveza. Isso faz com que as pessoas desarmem a rejeição. Para isso, acho importante ter consciência do conteúdo transmitido pelo humor. 

Em Portugal, a apresentadora e figura pública Rita Ferro Rodrigues gerou um debate recente ao afirmar que são necessárias mais mulheres no humor. Como é que uma humorista feminista vê esta questão?

Fazem falta mulheres no humor. Aliás, faltam mulheres em geral para fazer coisas. Para nós, tudo é dez vezes mais difícil do que para um homem negro. Assim como para os negros e as minorias em geral. Felizmente, aqui no Brasil estamos a passar por uma boa fase. Temos mulheres poderosas no humor mas ainda faltam mais. E não é por talento ou aptidão. É por rejeição, como na política.

Como é que alguém que trabalha para fazer os outros rir ou, pelo menos, estar bem, observa um Brasil em hemorragia interna com conflitos políticos, pobreza e problemas na educação?

Está difícil. É um momento triste de ver. Estávamos a caminhar para um Brasil mais igual e houve um retrocesso chocante. Até para as pessoas que foram favoráveis para o governo atual. Temer unificou o Brasil nesse ponto. Todos o detestam (ri). É muito bom viver aqui, por um lado. O brasileiro é muito legal mas é muito difícil estar no Brasil nesta altura com todos esses problemas. Por isso é que conheço tanta gente a pensar mudar-se para aí. 

Já esteve em Lisboa antes. Qual foi a impressão?

Eu amei demais! Só tive a sorte de ir a Lisboa, mas quero muito conhecer o Porto. Tive a sorte de apanhar os santos [populares] e foi incrível! Confesso que sou fã de Carnaval, por isso foi ótimo apanhar essa temporada aí em Lisboa.

O público reconhece-a pelo humor mas é um concerto que irá apresentar no The Famous Fest, em Lisboa no dia 29, e na Casa da Música, a 4 de outubro. Que formato é este?

É um concerto que nunca fiz antes. Sou só eu e um músico. Vou adaptar o meu repertório. Vai ficar tudo menor. Como nunca toquei aí, a minha vontade é voltar ao “Monomania” [álbum de estreia de 2013]. Vou dosear com as canções do “Problema Meu [o sucessor do ano passado]. 

Já sabe o que quer fazer a seguir? 

Quero misturar tudo. A atriz e a autora, a cantora e a compositora. Ando à procura de explorar os dois lados e fazer algo narrativo mas musical.