Alojamento local. Prólogo de uma Lisboa sem alma

Nos bairros históricos de Lisboa, os impactos do alojamento local são uma constante. Não há números sobre saídas forçadas, mas há quem esteja a estudar o fenómeno de gentrificação. “Em Alfama, na Rua dos Remédios, há 230 casas no Airbnb e só uma ou duas disponíveis para os moradores”, diz investigador

Aproxima-se o final da manhã de uma terça-feira e na zona da Sé vive-se o bulício já tão característico da Baixa lisboeta. Carros e tuk-tuks compõem a paisagem e as buzinas enchem os ouvidos, enquanto nos passeios pululam turistas com mochilas às costas e os portugueses são uma espécie rara. No sítio para onde nos encaminhamos, porém, o ritmo é calmo – ouve–se até, ocasionalmente, o canto dos pássaros –, há uma aura da Lisboa típica intocada e a língua mais ouvida (ainda) é o português. Fica ali muito perto, depois da Sé, escondido por um portão bem na esquina de dois prédios – chama-se Pátio do Carrasco.

“Antigamente, Lisboa era pobre em riqueza, mas rica em alma. Hoje em dia, é rica como cidade, mas pobre em alma.” Quem o diz é Carla Cunha, de 38 anos, uma moradora do pátio que está a sofrer um dos efeitos mais impactantes da explosão do turismo em Lisboa: o novo senhorio, que comprou o prédio em abril, não lhe renova o contrato de arrendamento porque quer fazer obras profundas, para, segundo Carla, abrir um alojamento local. “Já o faz em dois apartamentos…” Por isso, até dia 30 de setembro tem de deixar a casa onde vive há cinco anos com as duas filhas menores e o companheiro.

Carla não morou sempre aqui, é certo, mas Lisboa é a sua cidade: nasceu no Regueirão dos Anjos e sempre viveu na capital. É a cidade que viu nascer as suas filhas, justifica, e não queria ter de abandoná-la. É a mais nova entre os vizinhos do pátio, mas criou uma ligação com eles e ajudam-se todos no que é preciso. “Aqui, é como se fôssemos uma pequena aldeia”, diz. É ali na zona, também, que as suas filhas frequentam a escola. A acompanhar a conversa, o barulho das obras do último andar, propriedade do mesmo senhorio.

Desde abril tem procurado casas para arrendar naquela e noutras zonas, mas as opções que encontrou têm uma renda que não consegue suportar – e as que consegue são casas demasiado pequenas para quatro pessoas. Paga 220€ de renda e vive com pouco mais de 480€ por mês de rendimento social de inserção. Está desempregada, mas vai fazendo “uns biscates”. Tal como o marido, é assistente de jardinagem, mas não arranja trabalho na área. Não apresenta o marido porque esteve a trabalhar durante a noite, “a substituir um padeiro que está de férias”, e ainda está a dormir.

Dia 26, Carla vai escrever à vereadora da Habitação da Câmara Municipal de Lisboa, Paula Marques, com a ajuda de uma advogada, para tentar uma vez mais ter uma audiência para expor a sua situação. Tem esperança de que a câmara, com tantas casas devolutas e fechadas, possa ajudá-la e alugar-lhe uma. “Mas o Estado quer é vender o património”, acusa. O tema tem marcado o debate dos candidatos à CML, com Fernando Medina a garantir que a câmara tem comprado mais património do que aquele que vende e garantindo que está em marcha o programa Renda Acessível, que vai criar 6 mil novas habitações na cidade. Os adversários do autarca à esquerda e direita não poupam críticas às políticas de habitação seguidas nos últimos anos e ao ritmo demasiado lento na criação de ofertas acessíveis.

“Tenho uma tenda T3 e monto-a em qualquer lado” Carla aponta duas casas que já estavam fechadas quando se mudou para o Pátio do Carrasco. “Os donos não aparecem”, lamenta, e a câmara nada faz. Num pátio histórico como aquele, com marcas arquitetónicas que remontam a 1755, a câmara podia, aliás, “ter-se metido na venda” do prédio onde Carla mora, “mas não liga”.

Se até dia 30 não arranjar uma solução, recusa-se a abandonar a casa. “Se fosse só eu e o meu marido… Eu tenho uma tenda T3 e monto-a em qualquer lado. Agora, com as minhas filhas, não. Vou para a rua e vem o Tribunal de Menores.”

Em Alfama encontramos outro caso: António Melo, de 71 anos, está desde 31 de maio a viver ilegalmente na casa que arrendou durante dez anos, um rés-do-chão no Beco da Lapa. No ano passado, o prédio foi comprado e não lhe renovaram o contrato. Além de um casal e outro senhor, é o único inquilino que não saiu – todos os outros, conta, cederam à pressão para saírem das casas. Agora, os apartamentos estão em obras, e o barulho impede a conversa dentro de casa. António Melo sabe que quem comprou o prédio – “uma empresa com um nome pomposo, Trilhos de Charme” – quer fazer alojamento local. Uma rápida pesquisa online confirma-o: a empresa exerce como atividade “alojamento mobilado para turistas”.

Enquanto caminhamos com António para uns bancos e deixamos o barulho das obras para trás, passam vários turistas. Uma mulher com sotaque inglês mete a chave à porta numa casa típica do bairro. “O presidente da junta, Miguel Coelho, e outras pessoas na câmara dizem-me para não abandonar a casa enquanto não me arranjarem outra”, prossegue o lisboeta. Sabe que no caso dos moradores do n.o 25 da Rua dos Lagares, a ação conjunta da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior e da Câmara Municipal de Lisboa impediu o despejo coletivo. Quer que o mesmo aconteça no seu caso, já que “a freguesia é a mesma”.

Por agora, não há qualquer ajuda à vista. António Melo nasceu em Santa Catarina e foi viver para Alfama com cinco anos. A vida deu voltas e, depois de passar por outras localidades do país, acabaria por regressar a Alfama há dez anos. Alfama é a sua casa. E, de um dia para o outro, tudo mudou. Recebeu uma ordem de despejo do Balcão Nacional de Arrendamento, mas “eles dão 15 dias para a pessoa contestar”. Assim fez, e neste momento está à espera que a Segurança Social nomeie um advogado para o defender. Já procurou casa, mas todas têm rendas acima de 400€ e a reforma – cerca de 600€ – não chega. Tal como Carla, fala da falta de casas que existem para arrendamento de longa duração e das rendas elevadas – e incomportáveis – que têm as que existem no mercado. Mas não desiste: sabe que na Rua do Vigário há dois apartamentos em obras, e está à espera que as obras acabem para ver se lhe arrendam um. “Não se sabe se eles depois querem transformar aquilo em alojamento local, não é? Isto agora é o que está a dar”, desabafa.

Alguns vizinhos do prédio foram para casas de familiares. Há um casal que ocupa, há quase dois anos, uma casa que estava desocupada – “o senhorio não se interessa pela casa”, deduz. Nos últimos dias, um movimento cívico tentou também ocupar um prédio em Arroios. António não tem esses planos. Diz apenas que é em Alfama que tem todas as suas relações – da família, restam apenas uns primos afastados – e se sair do bairro teme ficar isolado. “Há dias em que, se acordo mais tarde, os vizinhos ficam logo preocupados e acham que aconteceu alguma coisa.” Além disso, foi operado ao coração há alguns anos e ali tem a médica de família, que o segue todos os meses. Receia perdê-la.

Uma questão de memória Os moradores dos bairros históricos de Lisboa sabem que o turismo é bom para a economia, mas pedem um equilíbrio. O que será dessas zonas lisboetas com cada vez menos habitantes locais e cada vez mais turistas? O sociólogo João Pedro Nunes lembra que esta é uma tendência cada vez mais comum, não só em Lisboa, mas à escala global. Traça, em poucas palavras, a realidade lisboeta: o que tem vindo a acontecer nestes bairros é que “muitas vezes são os mais novos os primeiros a sair, e os mais velhos ficam por estarem protegidos pelas leis do arrendamento”.

A maioria da população idosa residente nestes bairros tem contratos de arrendamento anteriores a 1990. Em muitos casos, os senhorios acabam por negociar a saída com os inquilinos, em troca de indemnizações atrativas. E, por vezes, a pressão dos senhorios acaba por gerar situações trágicas.

Carla Cunha fala de um episódio que aconteceu com uma vizinha da zona: “Houve uma senhora que já tinha 92 ou 93 anos, muito lúcida, que ficou maluca por causa do senhorio. Hoje está num lar.” Era uma mulher sozinha, sem filhos, que ali viveu toda a vida. Os vizinhos fizeram um abaixo-assinado na esperança de conseguirem travar a situação, mas a idosa acabou por ter de sair.

À medida que muitos vão saindo instala-se em quem fica “um sentimento de que já não há lugar, de que se está fora do lugar”, explica João Pedro Nunes.

São os idosos aqueles que mais sofrem com esta conjuntura, admite o sociólogo. À sua volta, nas casas onde outrora viveram os amigos de uma vida, entram e saem caras desconhecidas que se sucedem de forma muito rápida. “As redes de relacionamento tornam-se muito débeis e precárias”, nota o investigador. Consequentemente, surge um paradoxo: se é certo que estes bairros são particularmente atrativos para os visitantes, que “procuram sempre elementos tidos por autênticos”, também o é que esse ambiente genuíno “está em risco de desaparecer”. João Pedro Nunes contextualiza, mostrando que há uma perda de referências daquilo que é antigo e histórico: “A mercearia passa a ser uma ‘deli’ aberta 24h por dia, o antigo cafezinho e leitaria do bairro transforma-se em casa de fados à noite.”

O sociólogo não tem dúvidas de que “há, de facto, um problema nestes bairros”. É natural que as memórias associadas a um espaço e que o caracterizam se vão perdendo mas, atualmente, isso está a acontecer de uma forma mais acelerada.

Uma Lisboa dos turistas e sem dados sobre saídas forçadas “O alojamento local explodiu em Lisboa como explodiu noutras cidades do mundo”, mas aqui “não está a ser minimamente regulado”, diz Rita Silva, presidente da Associação Habita – Coletivo Pelo Direito à Habitação.

Nos últimos anos, à semelhança desta associação, têm surgido inúmeros movimentos que na sua base têm, entre outros motivos, a explosão do turismo e os efeitos que tem tido pelo país em geral e em Lisboa em particular. Rita Silva defende que o alojamento local “tem de ser regulado” e que, em Portugal, tem sido promovido – ou não tivesse um “regime fiscal melhor e mais compensador para os senhorios do que o regime fiscal do arrendamento”. A presidente da Habita denuncia uma realidade familiar a quem procura casa na capital: “há um aumento brutal das rendas” e há pouca oferta para arrendamento de longa duração.

O facto de não haver regulação gera outro problema: a inexistência de números e estatísticas. “Já foram milhares de pessoas expulsas”, denuncia Rita Silva, que tem acompanhado várias famílias em risco de perderem as suas casas. As únicas estatísticas que existem são do Balcão Nacional do Arrendamento – ao qual compete dar ordem de despejo a inquilinos por falta de pagamento ou por se manterem na casa depois da data acordada no contrato, os casos extremos. Revelam que, entre janeiro e junho de 2017, cinco famílias foram despejadas por dia em Portugal.

A face oculta do problema são os inquilinos cujo contrato não é renovado e têm de deixar as casas. Não há números sobre isso nem estatísticas que indiquem quantas dessas casas são depois usadas para alojamento local.

Apesar de não haver números, é possível ter uma ideia da extensão do problema. Agustin Cocola Gant, investigador catalão do Centro de Estudos Geográficos na Universidade de Lisboa, tem vindo a estudar desde 2015, juntamente com a investigadora Ana Gago, o impacto do turismo nos bairros históricos de Lisboa e o fenómeno da gentrificação. Tem ainda poucos dados, mas revela ao i um exemplo que ilustra bem o que está a acontecer: “Em Alfama, na Rua dos Remédios, há 230 casas no Airbnb e só uma ou duas disponíveis para moradores. Se uma pessoa quiser arrendar uma casa lá, não há”, denuncia, acrescentando que “há uma substituição do mercado de arrendamento de longa duração por curta duração”.

O investigador lamenta o que está a acontecer na cidade ao nível da habitação e do turismo e defende que é muito semelhante ao que aconteceu em Barcelona, onde investigou o mesmo fenómeno. Tal como Rita Silva, verifica que “há muitas pessoas que estão a ser despejadas, mas não se sabe ao certo quantas porque não há quem controle”. Uma das conclusões do investigador é que há muitos prédios nesses bairros que estão a ser recuperados, “mas não para o residente local, é para os turistas”.

Segundo Gant, Lisboa está imersa num “círculo vicioso”: as pessoas são despejadas, os prédios são reabilitados para alojamento local, há cada vez menos oferta no mercado de arrendamento de longa duração e os preços são cada vez mais elevados. Contudo, refere que o problema habitacional não se deve apenas à explosão do alojamento local, apontando o exemplo do estatuto dos residentes não habituais. “Estas zonas turísticas são atrativas para moradores europeus, turistas de longa duração, que compram aqui habitação para segunda residência. São muitas vezes ingleses ou alemães que durante vários anos têm benefícios fiscais”, afirma.

Para o investigador, a falta de informação estatística é “preocupante” e resulta da ação da Câmara Municipal de Lisboa, que “não tem vontade de saber exatamente o que está a acontecer”.

Um futuro melhor? Contactada pelo i, fonte da Câmara Municipal de Lisboa evocou o caso da Rua dos Lagares, sublinhando que tem dado provas de que está empenhada em regular o alojamento local e conseguir um “equilíbrio” entre as casas para turismo e o arrendamento de longa duração.

Eduardo Miranda, presidente da Associação do Alojamento Local em Portugal (ALEP), também se mostra positivo em relação ao que tem sido feito para regular o setor. “Tem havido uma grande evolução ao nível dos registos”, sublinha. A 1 de julho entrou em vigor uma medida que obriga plataformas como o Airbnb ou a Homeaway a mostrar o número de registo dos alojamentos locais.

A medida veio combater a ilegalidade: nas plataformas, só podem agora constar casas que estejam registadas no Registo Nacional de Alojamento Local (RNAL), ou seja, que estejam legais e cumpram as obrigações fiscais que disso advêm. Até à aprovação dessa medida havia uma “grande disparidade” entre o número de imóveis que apareciam nas plataformas e o número de imóveis registados no RNAL, isto é, legais, continua Miranda. Segundo as contas da ALEP, “até a nova medida entrar em vigor, 20% dos alojamentos locais em Lisboa não estavam registados”.

A associação fez uma análise relativa ao período compreendido entre o anúncio da medida e a sua implementação – maio, junho e julho –, “e nesse período registou–se o maior processo de legalização de sempre”. Eduardo Miranda revela que “em Portugal inteiro, houve 3500 novos registos, um número que está muito acima do que é o crescimento normal do setor – e que provavelmente advém da legalização e está muito associado à nova medida”. Lisboa revelou a mesma tendência: houve quase 600 registos “que, quase de certeza, se devem ao processo de legalização, porque em Lisboa o número de registos já estava bastante estabilizado e, de repente, houve um salto completamente invulgar”.

Miranda acredita que, no futuro, as novas obrigações legais levem a menos alojamentos locais, principalmente nas zonas onde há maior concentração, como é o caso da freguesia de Santa Maria Maior, que integra bairros históricos como Alfama, Baixa, Castelo ou Mouraria. E recorda que, a par do crescimento do turismo, a crise e o desemprego foram os principais motores para o crescimento tão acentuado do setor. Mas reconhece o outro lado da moeda. “Perante a hipótese de os proprietários que tinham rendas baixas há muitos e muitos anos fazerem outra coisa com o imóvel”, muitos optaram por alojamento local.

Eduardo Miranda recusa, porém, a ideia de que a atividade seja sinónimo de dinheiro fácil. O responsável assinala que esta é mesmo uma mensagem que a ALEP tem procurado clarificar. “Se alguém tira uma rentabilidade um pouco maior é porque é um emprego, é um autoemprego, e tira-se uma rentabilidade maior pelas horas que se dedicam à atividade”, remata.

Um problema maior Para Rita Silva, da Habita, é inegável que existe um problema de habitação não só nos bairros históricos mas em toda a cidade e no país. E apesar da explosão do alojamento local ser em parte responsável, uma vez que tem vindo a subtrair um grande número de habitações ao arrendamento de longa duração e provocou um aumento exponencial das rendas, afirma que não se deve reduzir a questão a este fenómeno em particular. “As políticas de habitação quase não existem”, lamenta.

E se aí os avanços foram parcos, nos últimos anos, a nova lei das rendas, o estatuto dos residentes não habituais e os vistos gold facilitaram a vida a apenas algumas das pessoas que escolhem a capital para viver, e quase sempre as que vêm de fora.

A discussão promete continuar, entre moradores e também no centro da campanha eleitoral em Lisboa. Amanhã há um novo debate a juntar os primeiros candidatos das listas do BE, do CDS, da CDU, do PAN, do PSD e do PS à Câmara de Lisboa, desta feita promovido pela Morar em Lisboa. A iniciativa terá lugar no Fórum Lisboa, pelas 21 horas.

*Editado por Marta F. Reis