Os laureados com o prémio Nobel da Paz raramente são alvo de críticas depois de lhes serem atribuída a homenagem. Aung San Suu Kyi, Nobel da Paz em 1991 e ministra dos Negócios Estrangeiros de Myanmar desde 2015 – mas líder de fato do Governo –, parece ser a exceção. Nas últimas semanas Suu Kyi tem sido alvo de uma maré de críticas da comunidade internacional pelas ações – ou inação – do seu Governo, ao que altos funcionários da ONU caracterizaram como ‘limpeza étnica’ contra os rohingya, uma minoria étnica muçulmana num país de maioria budista. Dezenas de aldeias foram queimadas, 370 rohingya foram mortos pelas Forças Armadas e 400 mil rohingya já fugiram para o Bangladesh, sobrelotando os campos de refugiados.
De ativista a Nobel da Paz
Estavámos em 1988 e a Birmânia vivia sob as botas de uma brutal ditadura militar, quando Suu Kyi, filha de um histórico militante pela democracia, decidiu retornar ao país para cuidar da sua mãe doente. Mas a luta pela conquista de liberdades fundamentais e direitos humanos falou mais alto. A ativista participou entusiasticamente na revolta popular contra a ditadura do general Ne Win, no poder desde o golpe de Estado de 1962. A revolta foi violentamente reprimida nos meses seguintes, causando mais de 10 mil mortes. No meio da convulsão política e social, formou-se um novo partido – a Liga Nacional pela Democracia – e Suu Kyi foi eleita secretária-geral. A birmanesa rapidamente se transformou na líder do movimento pró-democracia e, por isso mesmo, foi presa pela primeira vez em 1989 – para evitar que se candidatasse às eleições gerais do ano seguinte, as primeiras desde a instauração da ditadura – e, depois de libertada, foi-lhe imposta a prisão domiciliária. Pela sua defesa intransigente da democracia e dos direitos humanos, Suu Kyi recebeu, em 1990, o prémio Sakharov do Parlamento Europeu e, em 1991, o prémio Nobel da Paz – homenagens que não poderia aceitar pessoalmente por estar em prisão domiciliária, a qual só terminou em 2010. O Comité Nobel atribuiu-lhe o prémio por acreditar que demonstrou «esforços incontroláveis e ter mostrado o seu apoio a muitas pessoas em todo o mundo que se esforçam para alcançar a democracia, os direitos humanos e a conciliação étnica por meios pacíficos». Num discurso proferido por Suu Kyi numa plateia composta por membros do comité em 2012, apelou aos «doadores do mundo para atenderem às necessidades dessas pessoas [refugiados] que estão à procura – e muitas vezes lhes devem parecer uma busa em vão – de refúgio» e defendeu que «os direitos humanos devem ser protegidos pelo Estado de Direito».
Nas últimas duas décadas a ativista foi consecutivamente galardoada com inúmeros prémios, reforçando a sua autoridade na defesa da paz, dos direitos humanos e da liberdade. As dificuldades da manutenção da ditadura militar foram aumentando e, em 2011, o general reformado Thein Sein foi eleito presidente do parlamento e dissolveu o regime militar, agendando novas eleições para 2012. Nestas, Suu Kyi foi eleita para a câmara baixa do Parlamento birmanês e na sequência das eleições gerais de 2015 o seu partido ganhou 80% dos votos, formando Governo, mesmo que os militares continuem a controlar significativamente o país e as suas instituições.
Suu Kyi e os rohingya
A atual crise dos refugiados rohingya começou quando na última semana de agosto um grupo de militantes rohingya atacou esquadras da polícia e uma base militar em Rahkine. Em resposta, as autoridades birmanesas queimaram aldeias e abateram civis que fugiam de Rakhine, onde a minoria rohingya se concentra no país, segundo relatos de refugiados. Suu Kyi, a líder de fato do governo birmanês – os militares não deixaram que uma mulher assumisse a liderança do executivo –, foi alvo de críticas da comunidade internacional. Outros laureados com o prémio Nobel da Paz reagiram contra a líder birmanesa. Malala Yousafzai, jovem paquistanesa que se opôs à ditadura dos talibãs pelo direito à educação, exigiu a Suu Kyi que condenasse a violência. O bispo Desmond Tutu, uma das figuras que, ao lado de Nelson Mandela, combateu o apartheid sul-africano, escreveu uma carta à líder onde afirmava que as suas ações eram algo de «incongruente para um símbolo da paz» que esteja na liderança de um povo que não esteja «em paz consigo mesmo». Opinião diferente teve o Comité Nobel, que, pela voz de Gunnar Stalsett, considerau que «nunca nenhum prémio foi anulado e o comité não emite condenações ou censuras aos laureados». «Quando a decisão é tomada e o prémio dado, a responsabilidade do comité termina», justificou. Porém, esta posição não é partilhada por outras instituições que também homenagearam Suu Kyi. É precisamente o caso de um dos maiores sindicatos britânicos, a Unison, e da Universidade de Bristol, que decidiram suspender o prémio atribuído à líder por estarem a rever a sua atribuição à luz dos novos acontecimentos no país.
Num discurso à nação esta semana, Suu Kyi assegurou que o governo «tomará medidas contra os responsáveis pela violação de direitos humanos» no Myanmar, mas, por outro lado, afirmou também a existência de «alegações e contra-alegações» que não oferecem ao Executivo uma base sólida para «perceber quais os verdadeiros problemas» que levaram à fuga de 420 mil rohingyas, onde se incluem 250 mil crianças. A líder birmanesa garantiu ainda, e contradizendo as informações fornecidas por altos funcionários da ONU, que «não teme o escrutínio internacional» – apesar de ter impedido a ONU e ONG de acederem a Rakhine – e que as operações de segurança «foram concluídas a 5 de setembro», além de terem cumprido «rigorosamente o código de conduta». No seu discurso Suu Kyi utilizou o termo «50% da população muçulmana bengali» para se referir aos rohingya, denominação que deixou a comunidade internacional em alerta. A Amnistia Internacional não hesitou em publicar um comunicado a denunciar a líder por estar a «enterrar a cabeça na areia» e a desprezar os «horrores» testemunhados em Rakhine. A AM classificou ainda o discurso como uma «mistura de mentiras e vitimização».
Não é a primeira vez que um laureado com o Nobel da Paz está envolto em polémica, embora por razões distintas. A atribuição do prémio a Henry Kissinger, um dos principais estrategas do presidente norte-americano Richard Nixon para o sudeste asiático, em 1973, ou ao ex-presidente Barack Obama, em 2008, causou polémica e fragilizou a própria homenagem enquanto símbolo de reconhecimento por esforços em prol da paz.