É a terceira vez que me refiro a um livro. Desta vez, ao Quando Portugal Ardeu (Oficina do Livro), de Miguel Carvalho, uma obra de 560 páginas, apresentada como «um retrato do Lado B da Revolução». Mas bastaria ler a apologia do Avante!, de 25 de maio, para perceber que este é mais um livro escrito a partir do ‘Lado A’, o lado dos que sempre tiveram voz.
O ‘Lado B’ só será conhecido no dia em que seja publicada uma investigação séria sobre o processo de sovietização de Portugal, que foi posto em marcha em nome do combate ao capitalismo.
É essa a história que está por fazer. O que se publicou até hoje são, na maior parte, descrições descontextualizadas — escritas, ora com inspiração romântica, ora com objetivos panfletários, para defender uns e atacar outros. Mas o publicado tem um elemento comum: o branqueamento da ação do Partido Comunista, de Álvaro Cunhal e de Vasco Gonçalves, mais os seus governos provisórios.
Diga-se a verdade: não perderam tempo. Logo no dia 26 de abril, já estava em ação a única força política hierarquizada que existia no país, treinada em anos de clandestinidade.
Não lhe foi difícil embalar oficiais, sargentos e praças, em estado de inocência, colocar-lhes cravos nas mãos e exibi-los em desfiles e comícios, para mostrar que o MFA apadrinhava a coisa.
Enquanto a festa ia na rua, os obreiros do PCP faziam o trabalho de sapa, ocupando postos chave na administração pública e nas empresas, enquanto, sorrateiramente, enviavam para Moscovo os arquivos da PIDE, onde se julgava estar informação comprometedora para os adversários políticos. Foram anos negros, em que Portugal só não foi convertido em mais uma república soviética porque a geografia não ajudava.
Quando morreu, Álvaro Cunhal foi incensado como um político corajoso, coerente, inteligente e… belo!
Sobre a coragem, o que se conhece é que perseguiu implacavelmente comunistas prestigiados, para chegar a secretário-geral.
Sobre a coerência, estamos conversados. O PCP entrou no século XXI a defender a cartilha soviética, que Khrushchev banira em 1956, no célebre Discurso Secreto em que denunciou os crimes de Estaline. Se a humanidade só tivesse tido ‘coerentes’ deste calibre, ainda estaria na Idade da Pedra, porque jamais abdicariam dos dogmas.
Sobre a inteligência, os resultados eleitorais não abonam a favor de uma condução esclarecida do partido.
Sobre a beleza… Não me atrevendo a discutir gostos, dei-me ao trabalho de pôr, lado a lado, fotografias de Cunhal e Brejnev e concedo: o nosso comunista era mais bonito que o deles.
Vem esta deambulação pelo passado a propósito do Quando Portugal Ardeu. Vá-se lá saber porque bulas, lembrei-me do livro, e do PREC, enquanto lia as notícias do que vai pela Autoeuropa.
Em 1975, as paragens de produção ‘para defender os interesses dos trabalhadores’ eram defendidas por muita gente, que acreditava no que se dizia na televisão. Depois, uma a uma, começaram a fechar as empresas: Sorefame, Cometna, Siderurgia, Lisnave, a maior parte do Grupo CUF…
É este, e não outro, o retrato do Lado B da Revolução.